sexta-feira, 9 de março de 2018

Isto não é uma crônica

   Isto não é um copo, mas carrega as culpas líquidas e os perdões caudalosos, as buscas e as desilusões, as incompreensões e os alcances. Às vezes tem muito espaço, noutras, falta e derruba o que não cabe dentro; deslimita-se, liberta. Mata a sede que é estar em alto mar em dia de sol e nenhuma fonte, atiça a vontade de um gole, mesmo que seja o último.   
  Isto não é um corpo, mas troca calores, desperta calafrios, treme, embala e soluça antes dos pontos finais. Convida num instante, ignora no seguinte; dança e repousa, rouba e distrai, despede e se encolhe, trabalha e se rende.
  Isto não é um acaso, mas espanta pela precisão com que atravessa os planos, despedaça os caminhos e inventa rotas inesperadas.

  Isto não é uma canção, mas toca numa quinta-feira à noite, na volta para casa, nos últimos minutos da bateria carregada do celular. De repente, acaba antes da última curva, desassossega e desperta  memórias há muito entardecidas. Conta histórias, desfia clichês num refrão que é repetido por quem ouve e nem achava que conhecia.
  Isto não é uma casa, mas abriga do medo de ser finalmente encontrado, antes, obriga a limpar os pés no tapete da porta, a sentar num sofá confortável e antigo e a tomar uma xícara de café e a ouvir o suspiro de quem o oferece.

  Isto não é um mistério profundo, mas nunca acontece às luzes de um meio-dia. Tarda, pula algumas expectativas e aparece na madrugada, sem avisos, como se já estivesse ali há muito, camuflado ou somente discreto.
  Isto não é um buraco com coelho dentro, mas se distraídos caímos nele, vamos a um outro mundo do qual só saímos depois de aprendermos a amá-lo; sem compreensão, mas saudade profunda.
  Isto não é um varal de roupas, mas instala-se ordenado por tamanhos e cores num dia azul. Colore o vazio de um quintal sem crianças, sem cachorros, com os sonhos, descansando debaixo de um pé de romã, entre muros que precisam ser pintados.

  Isto não é o elogio a uma divindade, mas repete palavras e disposição de frases, manifesta-se em adjetivos e superlativos absolutos sintéticos, obriga, algumas vezes a acender velas e a colocar toalhas brancas na janela. Mas busca, acima de tudo, iluminação pelo verbo.
  Isto não é um relógio, mas marca os passados, ultrapassa o agora e se acaba, sempre, como bolha de sabão, no instante exato da chegada ao solo; sem futuro nenhum.
  Isto não é uma folha amassada em cima da mesa, mas é, também, uma tentativa desperdiçada, sem cópias, sem leitores, sem os riscos dos desvios da língua dos gramáticos, sem a possibilidade de salvar um coração.

  Isto não é uma estiagem, mas às vezes torna o ar poeirento, teimoso, resistindo a entrar completamente nas narinas. Lugar de desolação, mas também de espera, de amplos espaços de nada, sonhando com o verde.  
  Isto não é uma chuva, mas transita, voa e não permanece. Anuncia e não chega, invade sem preparar, a qualquer hora, qualquer lugar, com guarda-chuva quebrado, sem marquises próximas.
  Isto não é um cigarro, mas carrega o fascínio, o espectro de subversão e desafio à morte; o cheiro forte e a fumaça liberta, depois de sequestrar os alvéolos. 

  Isto não é um grito, tampouco um diafragma em expansão. Isto talvez seja só uma nota morta, que acabe antes de chegar à garganta, mas ainda que natimorta, foi um desejo de chegar ao lado de fora.
  Isto não é um retrato em aquarela, tampouco uma selfie no seu quarto de dormir, procurando o melhor ângulo e luz, mas é uma tentativa de elaboração de uma imagem, da duração de um sentimento que nem sempre teve um nome.
  Isto não é um lugar, mas chega-se a ele depois de andar muito, de se perder, de desistir e, de repente, ver uma janela com luz acesa ser o farol dos próximos passos.

  Isto não é um recado, um bilhete, uma observação numa folha pautada; isto não é um relatório, um diário ou notas de desacontecimentos fortuitos. Não é um texto em caderno de caligrafia, que ensina a forma, mas despreza o conteúdo.
  Isto não é uma carta, uma crônica, tampouco um poema de amor. Isto talvez seja só uma gota de sangue, de um dedo cortado, sujando os teclados de letras que estão apagando; l, n,m,a,s,d,c, acho que só o W permanecerá nítido até o fim. O importante é que isto não é.


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