domingo, 11 de março de 2018

A primeira vez em que ele não voltou

   A primeira vez em que ele saiu de casa, ela ainda pode aspirar um fio do seu perfume na fronha, no cobertor, nas almofadas da sala, nos quartos vazios, no armário cada dia mais oco, satisfazendo o paladar dos cupins,  nos seus cabelos, dentro dela e até caminhando pela rua,  por quase um mês, ainda. Depois, foi ficando distante, se despedindo muito delicado da vida em que ele já não dividia. Um perfume, um cheiro amadeirado que demorou bem mais do que ele mesmo para fechar, para sempre, a porta.
   Pensou em não lavar as fronhas, não abrir mais as janelas, em sufocar os cupins com o que restou para ela e até nem lavar  o cabelo e não sair mais do quarto. Mas quanto mais perdia-se do perfume, menos vezes olhava para a porta; lavou tudo. 

    A segunda vez vem que ele saiu de casa, para sempre, de novo, ela acumulou as correspondências dele no canto da mesa da cozinha. Contas, publicidades, cartões postais - inevitáveis leituras, já que vêm completamente devassados de mistérios - revistas promocionais, que ela abria - pelo menos alguém para ler os editoriais -  remetentes que conhecia e outros não. Sujas de café, manchas de gordura, digitais das visitas que se sobrepunham as dela, marcas de lágrimas, pequenas dobras nas beiradas dos envelopes de saudade apertada.  Herança em palavras que não eram para ela, mas que a distraíam, enquanto a água fervia. Até ser somente ela a destinatária do carteiro.
  Num sábado, pela manhã, juntou a pilha de correspondências e escreveu, com caneta muito vermelha, "mudou-se", em cada parte dele que sobrou e abandonou-as na caixa de correios, no mesmo instante em que escutou uma trava se abrir.

  A quinta vez que ele arrumou as malas, enquanto ele não estava, sentiu-se traído, na volta, com meia casa vazia e a garganta cheia do que dizer.  No início, não ocupou os espaços, continuava se relacionando com móveis imaginários e dizia absolutamente tudo aquilo que chegava à boca.
  Quando acordava pela manhã, sentava-se no chão, onde, antes, ficava uma mesa dobrável e duas cadeiras e servia o seu café, passava manteiga no pão, absolutamente mergulhado na fantasia de estar no mesmo lugar de sempre. Não ligava a TV, porque não encontrava mais o controle remoto, ficou gripado ao sair várias vezes molhado e nu do banho, porque o roupão que ficava atrás da porta do banheiro, misteriosamente havia abandonado-o.
  O apartamento, aos poucos, deixou de ser metade para ser inteiro, remendado com o novo. Comprou outra mesa para a cozinha, outro sofá para sala, um roupão novo e o controle remoto que deixava a TV muda, enquanto falava ao telefone com a mãe.

  Na ultrapassada vez em que um carro, cuja placa ela conhecia, estacionado à sua porta, arrancou bruscamente quando ela virou a esquina, levantando as últimas poeiras de história finita, ela se abaixou e pegou um punhado de terra e pedras para ampará-la no deserto que suspeitava atravessar. Depositou as partículas, de passos que não voltariam,  em um vaso de uma planta quase morta e prometeu-a vida nova e longa. Regou-a com mais frequência, aprendeu a transportá-la para um vaso maior, e, junto, colocou o resto de cascalho recolhido no dia do coração partido e a deixou  atrás da pilastra, para protegê-la da luminosidade direta.
   Aprendeu movimentos mais delicados, o melhor período para podas, a quantidade ideal de água de acordo com a umidade do ar e, até, a se levantar no meio da noite, se escutasse a chuva, para que a planta tomasse o seu banho mais genuíno. Quanto mais água, menos aparecia o cascalho, até sumir completamente e ela nem se lembrar de sentir saudade.

  Todas as vezes em que ele sai de casa, é o mesmo susto e constatação pressentida, é o mesmo luto e negação, é o mesmo apego por vestígios e apagamento deles, é o nunca mais que se perde um dia no corredor do prédio, o saco de lixo vazio nos primeiros dias, cheio, depois, até comprar um que caiba somente o seu descarte cotidiano.
  Todas as vezes em que ele desce as escadas, os passos parecem ser contrários a ida - talvez seja desistência, arrependimento e subida - até que não os ouvimos mais. Custa-se a acostumar não esperar para o jantar, para acordar no sábado ao meio-dia e os bilhetes com a caligrafia muito descuidada na cômoda do quarto.

 Todas as vezes em que o amor se despede sem testemunhas, juízes e defesa, os rituais ainda duram por dias. Colocar os dedos nos pratinhos das violetas, confirmar se antes de ir, aguou ou não, se sim, demorar com os dedos na última água possível, checar se o fogão ainda está quente e tentar adivinhar a última refeição, querer recolher e guardar alguns farelos de pão na pia, aspirar profundamente o cheiro do café, apertar a toalha contra o rosto e ver se ainda está molhada, organizar todos os vestígios de uma vida acompanhada, que termina antes da novela das nove.

  A última vez em que ele bate a porta, escuta-se, ainda, o som por muitos dias seguintes, às vezes sonha-se com a porta se abrindo, mas, ao acordar, a chave é a única realidade possível. 
   Nos primeiros dias, ainda espera-se o telefone tocar, enquanto o ônibus não vem ou numa fila do supermercado. Prepara-se, ainda,  duas xícaras de chá e toma-se as duas na cadeira invisível da cozinha. O olho passeia pelo quarto e vê a colcha da cama esticada, como sempre deixamos, e nunca mais alguém bagunçou e se esqueceu de arrumar, ao se sentar para calçar os sapatos.
  A primeira vez em que o amor não voltou cumpriu o seu destino de libertar-se e abrir espaço para uma nova mesa e outras cadeiras. É assim, quando ele não pode mais ficar.




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