quinta-feira, 15 de março de 2018

O que é um pai ou um poema?

   Há dois meses tento, obstinada, segurar os pedaços que caem durante a madrugada. Pela manhã,
inevitavelmente, varro os restos de mais uma desistência, pedaços desamparados de solidez. Não choro, porque não é para tanto, porque não é bom me desesperar, porque não há sequer um ombro que me console a esta hora ou um copo de água com açúcar estendido a meu socorro, para amenizar o meu drama comezinho. Tomo o café, coado sob a ausência e, depois, vou até à pequena loja de materiais de construção, onde tenho aprendido um pouco sobre paredes, rejuntes e acabamentos e volto para casa para tampar o vazio.   
   Começou com a queda de um, bem no alto, que eu só vi pela manhã, depois de uma madrugada chuvosa. Não ouvi o barulho do fim, mas fez muita sujeira no chão, na pia, no fogão. Lembrei-me da caixa, debaixo do tanque de lavar roupas e busquei  meia dúzia de azulejos iguais aos da parede da cozinha, aos quais eu nunca tinha pensado que recorreria; quase me desfiz deles, mas a caixa estava completa. Seis. Seis quedas precavidas, seis possibilidades de acidentes, quedas, trocas, seis azulejos, mas eu só precisei de um, na primeira manhã.

   Da constatação da queda até a recuperação não passaram mais do que duas horas. A parte que faltava eu mesma coloquei, como se colocasse uma carta certeira, tirada da manga, em um jogo que parecia perdido; como se assinasse uma grande obra prestes a ser exposta, coloquei-o como uma última peça de  um quebra-cabeças como se, sozinha, consertasse um mundo torto, desamparado e perdido. Tive orgulho, no primeiro dia.
  Os dias seguintes foram de contemplação da parede completa da cozinha, tomava o café sob um templo de perfeição e ajustamento.
- Venha, gato amarelo, ver a parede que a sua dona salvou.
  O gato amarelo não se comovia, mas eu ainda me sentia muito heroína da minha cozinha.
 
  Nos dois dias seguintes, dois azulejos perturbaram as minhas duas manhãs com as suas inconvenientes debandadas. Para o segundo azulejo desistente, meia hora até a sua troca e o terceiro eu fiz em apenas quinze minutos e ainda com a roupa de dormir; tenho ficado mais experiente com a a massa e a espátula. Algumas semanas de paz e completude na parede da cozinha e eu já me esquecia de qualquer buraco.
  Quando o quarto azulejo caiu, na madrugada de segunda-feira passada, o gato amarelo me esperava na cozinha, ao lado dos pedaços brancos de azulejo e pareceu tripudiar sobre a minha inocência de ordenar e completar o que insiste em desobedecer ou, quem sabe, veio lamentar a minha luta tortuosa e vã contra os desabamentos. Na caixa, debaixo do tanque, só duas possibilidades de substituição, depois dessa, somente uma. Eu gastei cinco vidas, de seis, em apenas dois meses.

  Mas há um semana, minha parede pareceu vencer. O gato viu a minha desesperança matinal, quando caíram, numa madrugada só, seis azulejos. Os quatro que eu troquei e dois antigos. Juntei os restos de esperança, inclusive as remendadas, coloquei no saco de lixo e passei o café sem nem olhar para a parede. A cozinha é, possivelmente, o lugar da casa no qual eu menos permaneço e, ainda, tenho outras prioridades de manutenção: uma grade corroída na varanda, uma fiação que precisa ser trocada no lavabo, que há um ano não pode ser usado quando a noite cai, um chuveiro que só funciona em duas temperaturas e que goteja até três horas depois de fechado.
  Mas de todas as falhas da casa, que são muitas, a que mais me incomodou foi o espaço vazio dos azulejos, ainda que eu tentasse evitar  olhar para eles, toda manhã, eu tinha o desgosto de um sorriso banguela.
  A fileira de azulejos ausentes na parede, antes completamente branca, parece ampliar todas as ausências da minha história. Tenho um buraco na parede da cozinha, que reflete os meus outros vazios.

  Não aguentei. Na segunda-feira, chamei o zelador e compartilhei a minha angústia. Ele disse que tinha um pedreiro, muito amigo, muito bom profissional e que cobrava bem barato.
- Mas não tenho como pagar mão-de-obra e material.
- Material tem aqui, para caso de necessidade. E o homem é barato, mesmo.
- Tá bom, então peça para ele vir quando puder.
  Na terça-feira, ele bateu à minha porta, é um homem baixo, mais velho do que eu imaginava para o tipo de serviço, mais magro e delicado do que os outros que já vieram e muito, muito calado, distanciado mesmo de sons. Foi caminhando devagar, atrás de mim, até a cozinha:
- Com a sua licença, dona moça.
  Brincou com o gato que antes nem frequentava esse ambiente da casa e, agora, parece não ter melhor lugar para ir, olhou para as minhas falhas com uma expressão estranha, pediu ao zelador uma escada para ver mais de perto e me disse:
- O jeito é arrancar toda essa parte aqui, de cima da pia até o teto.
- Mas vai ficar caro...e comprar esse monte de azulejos?
- Não. Eu arranco tudo sem quebrar, usamos os mesmos e mais os reservas que você tiver.
- Sobrou um... mas o zelador deve ter alguns para me dar.

  Na quarta-feira, ele já começou o trabalho e não teve nada de barulhento ou muita poeira como eu imaginava. Eu não acompanhei a retirada de cada azulejo para não incomodá-lo, não deixá-lo acuado sob o meu olhar ansioso, mas quis.
  É um processo muito cuidadoso e delicado, amoroso mesmo, eu diria, arrancar sem quebrar; queria aprender a proceder assim e nunca mais destruir nada.
   No primeiro dia, tomamos um café juntos, em frente a parede desnudada por ele e conversamos um pouco; eu falei bem mais do que ele. Ele elogiou a minha tentativa de salvar a parede:
- A massa ficou até bonita, mas é que não tinha espaço mesmo, a senhora não fez nada errado.
  Fiquei lisonjeada, mesmo, muito. Ele comeu um pedaço de bolo, brincou com o gato e folheou um dos livros que eu tinha na mesa, pareceu se interessar, eu ofereci como empréstimo.
- É de poesia. Gosta?
- Não conheço muito, sou mais acostumado com livros espíritas e jornal,  mas parece muito bonito. Levo para ler no ônibus e devolvo amanhã.
Combinou de voltar hoje para assentar os azulejos. Fomos ao zelador para tentarmos recolher, ao menos, cinco azulejos brancos. Para qualquer brancura eu estava disposta.
- Os diferentes, eu coloco mais escondido, perto do rodapé.
Encontramos seis azulejos de brancura suspeita e nos despedimos.
- Amanhã terminamos e sua parede vai ficar bonita e firme de novo, minha filha.

  Todas as vezes, na noite passada, em que eu me deparei com a parede sem os azulejos, como se fosse um corpo sem pele, em carne viva, eu levei um susto diferente. Horror, contrariedade, aceitação, admiração e depois, veio o nada. A cada vez que eu ia à cozinha eu ouvia a voz do homem me chamar:
- Minha filha.
  Não consegui dormir. Não sei se foi a parede com toda a sua vulnerabilidade exposta ou se foi a paternidade inédita concebida ontem. Acredito que ambas se complementam.
  Hoje ele chegou cedo e mais sorridente do que ontem  e enquanto eu fechava a porta, me disse:
- Que livro, hein, minha filha? Não dormi, passei a noite inteira lendo. Chorei igual uma criança.
  E me devolveu mais poesia do que eu havia emprestado.
- É o meu preferido também.
  Ele passou o dia cobrindo as imperfeições da minha parede, resgatando a ordem, a beleza e me afastando do caos e da precariedade. Tomamos café, olhando para uma parede inteira branca, com cinco azulejos meio amarelados ao pé da pia.
- Muito obrigada pela beleza de trabalho.
- Obrigado você, minha filha, por ter me emprestado um livro desses.
- Eu queria que o senhor o levasse.
- Não tem porquê, eu já li e vou levar todo ele dentro de mim agora. Fica com Deus, minha filha e para essas coisas de casa, chama a gente sempre que precisar, não precisa fazer sozinha.
  Fui fechando a porta, fingindo que ele voltava amanhã, mas não volta. Sussurrei:
- Até amanhã, pai.

  O que é um pai que eu não conhecia e um poema que ele não sabia?
  Passamos bem sem um ou sem o outro. Cresci sem um pai, nunca nem um nome ele teve, e sei que posso viver sem saber dele até o fim da minha vida, porque dela, em sua parte mais significativa, ele não fez parte. Não sentimos ausência alguma, até ela se esfacelar numa madrugada e invadir nossa manhã de café e silêncio. Sujar a pia, o chão e o fogão.
  Sem um poema também vive-se muito bem, se não o conhecemos, mas depois de o termos uma vez só no coração, não há meios de olhar uma parede e não procurar os cinco azulejos diferentes que fazem dela uma imperfeição poética. Meu pai me deu uma parede.
  Ele não voltará amanhã. Não tem porquê, o levo dentro.




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