quinta-feira, 1 de março de 2018

A vastidão que é não saber o que é uma maçã

  Parece que já era velha antes das maçãs, dos sacos plásticos, em três tamanhos diferentes, distribuídos nas gôndolas de verduras e frutas, dos pães de queijo, quentes, colocados nos pacotes de papel, molhando a embalagem com o vapor. Parece que já era velha antes dos repositores de mercadorias disputarem espaços com consumidores e funcionários da limpeza para colocarem os vidros de detergente com o rótulo para frente, enquanto brincam com as crianças que tentam se divertir, no supermercado, escondendo dos pais.
  Parece que já era muito vivida antes dos aparelhos de barbear descartáveis, os chicletes e as revistas de entretenimento serem colocados ao lado da fila do caixa; dos carrinhos duros, prateados serem  substituídos pelos coloridos, mais leves e flexíveis.     
  Parece que já era velha antes de eu frequentar as filas, conferir promoções e eleger marcas favoritas de sabão em pó, filtro de café e arroz.

  Parece que já era antiga antes de colocar o vestido estampado com listras, pentear o cabelo, colocar um pouco de perfume e procurar o carrinho dobrável atrás da porta da cozinha, sair apressada, sob as repreensões sucessivas do homem,  para irem, finalmente, ao supermercado.
  Parece que já era uma mulher muito adulta, antes dos nossos olhos se cruzarem e eu não suportar a sua maturidade vulnerável atravessar a minha segunda-feira e balançar com urgência a minha embarcação que flutuava sossegada.
  Parece que já era determinada e forte, uma ancestralidade de sabedoria, até uma frase ser lançada ao seu caminho e fazê-la rastejar por entre os potes de maionese, caixas de leite e lutas acumuladas.

  O cabelo pintado de vermelho é ralo, o meio sorriso é acolhedor e a sua presença calma parece uma lembrança antiga vindo me encontrar na banca de maçãs climatizada, no fundo do supermercado.
Talvez venha conversar, talvez só fique em silêncio e poderemos escolher frutas,  lado a lado, sem precisão de verbalizar qualquer coisa, enquanto os raios iluminam a avenida lá fora e os trovões provoquem pequenos tremores nas minhas pernas. Adio minha partida umas tantas vezes, não quero me molhar muito e estou de vestido e sandália, meu guarda-chuva não é confiável desde a última tempestade, na semana passada e, agora, a presença apaziguadora dela me faz querer ficar mais.
Então, ela pega uma maçã verde brilhante e olha, serena, com profundidade, por todas as perspectivas possíveis, o estado da fruta; acho que alcança, em poucos minutos, o campo, as mãos, a água que lavou a maçã. E eu seguia com ela entre as macieiras cheirosas, de algum campo largo, fresco e me esquecia de procurar pelo amido de milho, no outro lado do supermercado. Eu me esquecia do meu cotidiano, ordenado em itens numa lista, feita atrás de uma folha, arrancada de um calendário de parede.

  O idílico paraíso se rompeu com a chegada do homem e a curiosidade dela, que ainda lamento não ter compartilhado comigo, quando ele ainda estava longe.
- Essa maçã, será que demora muito para madurar?
  Uma maçã verde, cuja cor já é o seu estado final. Um homem rude, cuja impaciência não devia vir no carrinho macio do supermercado. Uma mulher madura, cuja dúvida é reprovada com a rispidez de um golpe de machado.
  A macieira se quebrou, as maçãs caem no chão de terra batida e ninguém se abaixa para pegar. Estão todas partidas, passadas do tempo. Volto a pensar no jantar e me esqueço de sentir o aroma doce e fresco de uma tarde entre árvores frutíferas. Voltamos ao insípido, claro e organizado supermercado, cujas fileiras de caixas, embalagens plásticas e rótulos metálicos nos prendem, ainda mais, à existência de impessoalidade e artificialidade dos tempos de prédios altos de concreto.

  Volto a ser triste e a estar cansada. Volto a sentir saudades da velhice que ainda não tenho, mas pela qual caminho sem saber muito o ponto da chegada.
  Tenho chorado muito nos últimos dias, tenho sentido muita saudade e quase nenhum medo; tenho evitado a fome, o suor e as escolhas; tenho evitado a exposição que é viver. Tenho decepado minhas próprias macieiras para evitar os sonhos, as distrações e os afetos que correm para os bueiros desde que começaram as chuvas de março, antes de março.
  Quando eu quis me salvar da tempestade da tarde, quando a mulher madura me ofereceu a calma e o contentamento de ver uma maçã verde pela primeira vez, as palavras de um homem cortaram nossas ramas imaturas e voltamos a ser secas. 

  Procuro, entre as batatas, um só motivo para uma indelicadeza que é interromper os sonhos de alguém. Afasto os tomates e tento encontrar as razões de uma dúvida não ser acolhida como possibilidade. Peso os pepinos e na transparência do saco plástico, minhas lágrimas voltam a cair.
Parece que já era velha com olhos de infância quando a mulher se afastou do machado e voltou a contemplar a banca de frutas; sem medo, sem restrições. Parece que suas raízes se juntaram as minhas, mesmo depois das ramas partidas, e ela se aproximou com um saco de maçãs vermelhas cuidadosamente escolhidas e colocou-as no meu carrinho.
  Parece que já era resistente e feita de muitas camadas de afeto, quando a impaciência do homem começou a visitar a sua banca. 

 Uma maçã dói tanto, no supermercado, às cinco da tarde de segunda. Um saco de maçãs liberta tanto, na cozinha de casa, às seis  da tarde do mesmo dia.
  O verde da maçã é a possibilidade, a identidade mais plena de uma maçã; o não-saber é a experiência da  mulher, que coloca um saco de maçãs vermelhas escolhidas no meu carrinho, volta para a gôndola e escolhe a meia dúzia dela, de maçãs verdes,  não me diz nada, mas  me leva de volta para o campo, para as macieiras e para o sonho da delicadeza possível no supermercado segunda-feira, no final da tarde encharcada de incertezas. Parece que amadurecer não tem cor. Frágil velhice, resistente ternura. Separo uma maçã vermelha e contemplo a vastidão que é não saber o que é uma maçã.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 06 de março deste estranho 2018

Querida Amanda,

Como registrou para a eternidade o poeta Virgílio - "Libertas, quæ sera tamen, respexit inertem". Dito assim, neste latim precário, penso em Alvarenga Peixoto,um iluminista determinado, poeta, boêmio, sonhador, de família nobre e rica da fina corte carioca. Morreu pobre e exilado em Angola, por febre amarela ou dengue, nunca saberemos.

Escreveu à sua amada Bárbara Heliodora, mãe de seus quatro filhos, o imortal Bárbara Bela - "Bárbara bela, do Norte estrela, que o meu destino sabes guiar, de ti ausente, triste, somente as horas passo a suspirar. Isto é castigo que Amor me dá."

Alvarenga Peixoto foi Juiz de Fora em Sintra-Portugal, veja só você. Talvez daí o motivo pelo qual cita a Estrela Polar (... do Norte estrela), visível apenas no hemisfério norte. Hoje, devido à poluição, não se vê - foi uma das minhas decepções no velho continente - não pude vislumbrar o que o poeta viu.

Bem, Virgílio escreveu que "A Liberdade que, mesmo tardia, ainda me olhou inerte", e Alvarenga Peixoto, latinista dos melhores, viu, leu e censurou a inércia. Cheguei onde precisava.

O homem da maçã verde viu e censurou o que não lhe interessava. Neste ponto, sua crônica é invasiva no fundo do fundo da ferida das mágoas que não perdoamos - poderíamos ser livres - ver o vermelho e saber que é vermelho, mas somos inertes à liberdade - precisamos ser escravos das nossas dores.

Bem, um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 06 de março desse desacostumado 2018

Querido Paulo,
Dizer que as suas conexões são sempre maravilhosas é a minha sina nessas missivas. Mas são, são sempre incrivelmente bem construídas e emocionantes. Bom, a temática da liberdade é uma remota ideia que me solicita com frequência e tem toda razão em associá-la, neste caso, à frase de Virgílio e à crônica deste dia. A inércia diante da liberdade...o quanto essa proposição, que generosamente você trouxe até aqui, ainda dará voltas nos meus pensamentos? É sempre muito bom quando vem e semeia questões.
Obrigada, abraços
Amanda