quarta-feira, 21 de março de 2018

Se eu escrevesse cartas

   O sol está forte e eu que não tiro mais os óculos escuros, desde que comecei a ter lágrimas insistentes que só vão embora, no tempo estimado clinicamente, de  três a cinco dias, tenho dificuldades ao entrar no prédio e enxergar qualquer coisa. Fico alguns segundos perto do portão, fecho-o com toda a calma, esperando que as pupilas se acostumem com a luminosidade muito menor, quando eu me virar. São nove e quinze e eu consigo ver o porteiro lá no fundo, separando as correspondências de uma pilha alta, da qual ele faz duas e depois três, para que não caiam quando ele mexer.
  Eu espero, ao menos, duas correspondências, nem cartas nem cartões ou convites; espero mais precisamente contas, que é o que eu recebo hoje pelo correio, nada mais. Fico parada em frente ao porteiro e a sua edificação postal, ele é de uma delicadeza admirável, não amassa, não tem urgência, sua atenção com cada número e nome dá uma dignidade ao papel que eu não saberia explicar. Se eu escrevesse cartas, gostaria que as suas mãos cuidassem delas antes que elas chegassem ao destino final; teria uma vida mais lírica a carta que ele cuidasse. 

   Estou em frente ao elevador e não sei se subo ou espero para ver se as minhas contas chegaram, preciso evitar os corredores estes dias, para não espalhar os vírus, mas não quero apressar um trabalho tão meticuloso.
  O elevador chega, sua porta se abre e eu a deixo fechar-se novamente, sem ninguém, vou para frente do balcão onde equilibram-se as cartas, mas não fico muito próxima, para dar espaço e tempo para que as minhas correspondências me encontrem.
  Queria esperar por outra coisa, quem sabe, por um envelope manuscrito, numa caligrafia conhecida, cuja chegada eu comemoraria antes de romper o lacre e o porteiro seria a única testemunha dos meus olhos vermelhos, mas brilhantes. Fico parada, distante, sonhando com as cartas que eu não recebo e com as que escrevo e não envio.
 
  Tenho o direito de permanecer calada, mas devo saber que isto também comunica alguma coisa; invariavelmente.
  Posso nunca responder às cartas, posso inclusive não abri-las, mas se o meu nome é o destinatário, essas palavras são minhas, desde o momento em que foram inscritas num papel. Se morrerem sufocadas no envelope, se forem embrulhadas em um saco de lixo, antes de serem lidas ou devolvidas ao remetente, ainda assim, continuarão minhas.
  Posso virar o meu rosto para o outro lado e não ver as mãos que solicitam a minha verdade, mas não posso, nunca, decepar tais expectativas; elas existem e estiveram ali, ainda que eu desviasse os olhos.
  Tenho o direito de recusar meu nome, posso não querer ouvi-lo em lábios cujos movimentos eu não reconheço, mas não posso me esquivar do que sou para alguém, ainda que eu quisesse não ser nada.

 Alguns moradores passam, mas ninguém pergunta sobre as cartas; quem tem a esperança de uma carta que não seja somente cotidiana burocracia? São contas, comunicados oficiais, cartas institucionais; ninguém envia notícias, términos, saudades, declarações ou poesia escritas a mão para este prédio.
  Continuo parada, sem falar nada. Quando subir, passarei longas horas confinada no apartamento em uma internação voluntária para não afetar os olhos de ninguém.
  Tenho o direito de ir e vir, depois de duas horas, dezessete meses, quinze anos, um século, às duas da manhã de uma quarta- feira, às três da tarde de um domingo, mas as portas nas quais eu bato e as que fecho atrás de mim, quase sempre não moram com a indiferença completa. Minha liberdade implica em muitas vidas atravessadas ou não; perturbadas ou não, modificadas ou não, contaminadas ou não.

  O porteiro já fez várias pilhas, de poucas cartas cada uma, e eu tento identificar alguma que seja minha. Só vou me aproximar, depois que ele terminar completamente e levantar seus olhos na minha direção. Só aí, ele trará as cartas que eu mereço e eu poderei ser, finalmente, a enclausurada do décimo segundo andar, rodeada de contas.
  Posso cortar o cabelo, pintá-lo, voltar aos exercícios e tonificar meus músculos, comprar outras roupas e passar a andar do lado oposto que eu costumo caminhar, mas tenho que saber que a minha cicatriz na barriga continuará lá, assim como a úlcera no estômago, a perna direita a cada ano mais curta do que a esquerda e a expectativa pelas cartas impossíveis; a parte de dentro do envelope continua.

  O porteiro termina a sua seleção e confirma o quadro que eu já havia pintado, levanta os olhos em minha direção, apanha uma pilha modesta no balcão, se levanta, estica os braços e me entrega as cartas que eu posso ter, ao menos agora. Vou para a frente do elevador, de novo, agora com as correspondências com o meu nome. Uma delas cai e eu percebo que são três: as duas contas e um postal no chão. No cartão, um lugar que eu nunca fui, mas que sempre sonhei: "Meu amor, não reconheço cidade nenhuma em que você não está". Era essa a carta improvável pela qual eu esperava.
Antes do elevador chegar, me viro para o balcão para devolver um engano, mas o elevador chega e a porta se abre.
- Posso ficar com ela mais algumas horas.
  Tenho o direito de não aprender outra língua, não ter permissão para dirigir e não ter lições de violão. Mas isso permitirá que traduzam a minha voz de um jeito que eu nunca diria, que façam o caminho por mim e que eu nunca seja embalada pela minha própria música. Posso acordar depois de cada sonho e negá-los durante todo o dia, mas não posso culpar ninguém se, um dia, depois de tantas negativas diurnas, nem dormindo, eles voltarem a me visitar.

  Coloco o postal em cima da minha mesa, olho para ele com desejo e desilusão. Se eu escrevesse postais, eu escolheria frases curtas e devotadas como essa. Eu não queria ser o destino, queria ser o remetente corajoso do sentimento declarado de estar em qualquer lugar do mundo que não é o mesmo sem o destinatário. 
  Tenho o direito a tomar um postal perdido e exibi-lo na minha sala, por alguns instantes, mas a frase, o lugar e o sentimento impressos atrás da cidade não pertencem a mim. Posso não me sentir culpada pela apropriação desajeitada, mas isto não me dá acesso genuíno ao que eu não vivi.
  Vou devolver o postal e, talvez, com ele a possibilidade de uma conjuntivite ao destinatário. Outros olhos brilharão; hoje, os meus só são vermelhos, molhados e distantes, numa cidade que eu também não reconheço, se tenho alguém a quem gostaria de escrever.  






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