domingo, 18 de março de 2018

Sou a única mulher fora da casa

  Sou a única mulher no ônibus, os outros são o motorista calvo, o cobrador com a metade de um
sanduíche nas mãos e outros dois homens no fundo, nos últimos bancos; um encostado na janela, na última fila de assentos, que parece querer dormir, mas está de olhos abertos, talvez estivesse dormindo antes de eu entrar e um outro, sentado na beirada de um banco mais alto, com as pernas para o corredor.
  Sou a única mulher no ônibus - foi o que eu pensei assim que entrei. Será que quando eu subi as escadas e passei pela catraca eles pensaram o mesmo que eu? Ou não pensaram em nada? Não repararam na exclusividade do meu gênero àquela hora, no ônibus?
  Sou a única mulher no ônibus a sentar perto da porta, arrancar o papel de um chiclete, colocá-lo na boca e a abrir um livro na página 47. Leio o mesmo parágrafo três vezes e, ao final dele, a única frase da qual consigo me recordar é: sou a única mulher no ônibus. Minhas pernas se agitam, minha garganta reclama umidade, sigo inquieta, mas finjo indiferença pelos quatro companheiros de viagem. A avenida parece ainda mais escura e comprida, quando eu penso que sou a única, a única.

  Sou a única mulher na sala, nenhuma mais virá, a porta está fechada e já distribuíram as instruções. Sento-me perto da janela, sozinha. Faz sol e os homens da sala se protegem da claridade. Sou a única mulher na sala; estou iluminada e quente.
  Depois da primeira hora, organizam-nos em círculo para parecer que todos  habitamos um mesmo sistema solar; mas sou a única mulher e eles sabem, comprometo a exatidão do círculo com a minha presença; sou o começo e o fim. Os homens na sala falam muito, falam de si como se fossem astros de TV, suas biografias são longas, cheias de detalhes desinteressantes para mim; escuto tudo, mas não consigo ouvir muita coisa.
  Sou a única mulher na sala e isso não adiantará de nada se eu permanecer calada. Posso visitar o outro sistema e falar na voz do meu.

  Sou a única mulher com um sonho distante guardado entre os dedos, eles tentam escapar e eu os seguro com firmeza e desespero; talvez eu esteja asfixiando-os.
  Sou a única mulher com um sonho distante, guardado na segunda gaveta da escrivaninha, sem cadeado, sem segredo, sem interesse de ninguém em descobri-lo.
  Sou a única mulher com um sonho distante que ainda dorme, o alarme soa, mas eu o adio sempre. Cinco, dez, quinze minutos e um dia inteiro se passou com ele em sono profundo.
  Sou a única mulher que distancia o sonho a cada noite um pouco mais, voluntariamente, embora minta que não. 

  Sou a única mulher com um vestido branco e brilhante, à porta de uma igreja, que não deseja um casamento.
  Sou a única mulher com  arranjo de flores no cabelo que não posa para fotos, que não quer fotos, que odeia ver sua história congelada em cenas artificiais.
  Sou a única mulher com um sapato de salto, não muito alto, que mesmo assim parece sempre que vai bater a cabeça no teto.
 
  Sou a única mulher segurando um balde verde no supermercado, procurando a máquina leitora de códigos para saber o preço.
  Sou a única mulher segurando um balde verde, devolvendo o amaciante para a gôndola e procurando um mais barato, para também levar o balde.
  Sou a única mulher segurando um balde cinza, porque o verde estava com uma fissura detectada, enquanto esperava os pães serem assados, na fila do supermercado, planejando lavar roupas no domingo antes do almoço.

  Sou a única mulher a não entrar na casa antes de amanhecer, meus irmãos não me repreendem, meu pai não me ofende, minha mãe não chora e minhas irmãs não me invejam. Todos se juntam na varanda e me esperam para o dia em que eu queira entrar ou só ir embora.
  Sou a única mulher a não entrar em casa antes da chuva, molho minha roupa, meus papéis e deixo que água carregue todo o invisível peso de um dia árido e abafado.
  Sou a única mulher a não encontrar a chave debaixo do tapete, onde deixavam há vinte anos para que pegasse quando voltasse da escola, e me lembro que não tenho vizinho a quem pedir para ficar esperando na sala, até alguém chegar e abrir a porta da casa.

  O motorista continuou seu trajeto e parou o ônibus, com destreza, quando eu dei o sinal, o cobrador separava as moedas, o homem do último banco dormiu e o do corredor estava concentrado na tela do seu celular. Desci do ônibus ainda na página 47. Sou a única mulher a atravessar a cidade sem interrupções, esta noite.
  Não, eu não sou a única, sou a primeira ou a última, nesta viagem, outras vieram antes ou outras chegarão logo atrás de mim. Sou a única mulher fora da casa e isso me responsabiliza por todas aquelas que também não quiserem entrar.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 25 de março de 2018

Querida Amanda,

Não sei onde foram vagar meus óculos, então irei pelo rumo de anos de máquina dactilográfica. Li seu texto com a atenção de sempre, as entrelinhas, os parágrafos, a mulher, a única mulher. Não há nela o sorriso, a paz, a tranquilidade, há uma espécie de perturbação atávica.

Atavismo este que vem de Eva. Ora, ora. Eva foi a única mulher do paraíso. Buscou o prazer, o saber, a consciência, o livre arbítrio e por estas coisas foi retirada, não sem antes ser vestida por pele de animais, cerzida pelo próprio Deus, como está em Gênesis 3, 21.

Melhor é impossível.Mesmo sendo a única mulher, vestiu-se com exclusividade divina. Assim são as mães, cada uma exclusiva expulsando do seu paraíso pessoal Adãos e Evas para irem à luta. E os vestem, e os alimenta, e os agasalha, sem serem deusas.

Queria falar da Internet das Coisas, da praga egípcia da pós-verdade, do Antonio Damásio, mas estou protelando.

Falando em Antonio Damásio, se ainda não conhece suas obras e sua concepção sobre a vida, procure ler seu livro (O Livro da Consciência) aqui só uma pequena amostra - http://files.neurocognitivo.webnode.pt/200000013-bbc65bcbfc/O%20livro%20da%20Consciencia.pdf

Vai gostar do que está ali. Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 28 de março de 2018

Querido Paulo,
ultimamente até chegar aqui tem sido um caminho mais árduo. Sinto imensamente pela demora em responder a sua carta, mas queria ler o trecho do livro de Damásio antes, para partilhar um pouco das minhas impressões, mas ainda não terminei a leitura...vamos tentar falar sobre ele mais a frente, quem sabe? Mas há tanta coisa ali...precisarei me organizar para comentá-los.
Conhecia somente "de nome", o António Damásio, através de uma ou outra citação em algum trabalho, depois li algumas entrevistas e gostei tanto que comprei um livro dele, no final do ano passado, e baixei outro dois no início da semana, mas ainda não comecei as leituras ("O Cérebro criou o homem"; "Em busca de Espinosa" e "O Erro de Descartes - Emoção, Razão e o Cérebro humano"). Que feliz coincidência essa sua indicação! Mais uma inexplicável sincronia.

Está coberto de compreensão generosa e sensível (como sempre!) quanto à filha de Eva, do texto; ela está sem sorrisos, sem tranquilidade e paz. Está a procura de um lugar seguro, que não existe... nem para ela nem suas irmãs, mãe, avós, filhas...enfim...nesta altura "é preciso estar atenta e forte".

No entanto, caro Paulo, não há escuridão que dure eternamente e as suas conversas trazem frescor e ótimos caminhos (isto facilita, profundamente, qualquer passagem). Obrigada,
Abraços
Amanda