segunda-feira, 30 de abril de 2018

Ele que falava javanês

  O retângulo amarelo balança sobre a minha cabeça, o céu está bonito e o retângulo inquieto. Se eu conseguisse que a minha voz saísse do apartamento, eu tentaria acalmá-lo. Não posso ver, mas sinto que ele saltita de um lado para o outro, demora até se aquietar e contemplar o dia recém desperto. Eu nunca o vi, mas muitas vezes ouço suas canções, eu não sei sobre o que elas falam, não nascemos na mesma língua, mas acho sempre muito bonito quando ele canta o que é dele, o que ele conhece e lhe é íntimo.
  O retângulo é o fundo de uma gaiola que fica a poucos metros da minha cabeça pelas manhãs, é tudo o que eu posso ver e se ele se esticar um pouco entre as grades, talvez possa ver o topo da minha cabeça algum dia desses. Os nossos dias coincidem na janela há pouco mais de dois anos, antes dele eu nunca tinha visto gaiolas por aqui, mas depois dele, tenho reparado na população inusitada nas janelas de outros prédios vizinhos; pássaros de gaiola, pássaros de gaiola de apartamento.

  O retângulo amarelo balança sobre a minha cabeça, mesmo quando eu não vou à janela. As gaiolas de todo o quarteirão frequentam os meus sonhos, durante à noite e os meus pensamentos, durante alguns minutos do dia: por que ter um pássaro? O que é ter um pássaro numa gaiola, conhecendo o que é morar num apartamento? Um pássaro limitado permanentemente por alguns centímetros quadrados, ainda é um pássaro? Animais são domesticados para quem? A imagem das gaiolas nas janelas dos apartamentos é claustrofóbica.
  O retângulo da cor do sol pousa, frequentemente, sobre a minha cabeça e me angustia; é uma sensação estranha de isolamento e tentativa frustrada de amar.
  Não conheço profundamente o casal do apartamento de cima, mas suspeito que os cuidados com o pássaro, desde a preocupação em migrá-lo de janela em janela até levá-lo ao veterinário, são contundentes provas de responsabilidade e boas intenções. Mas o retângulo ainda é inquieto sobre a minha cabeça, pelas manhãs.

- Sabe que horas são, Lorinho?
  O homem, que é quem passa a maior parte do dia com o pássaro no apartamento, conversa com ele quase o dia todo. Futebol, notícias do jornal, receitas culinárias, crise política, preocupação com os sintomas de alguma enfermidade humana e, agora, sobre as horas. O que é o tempo para um pássaro? O que nessa diversidade de repertório interessa a um pássaro?
  O homem fala a língua dele com um estrangeiro, o homem vive, explica, ama e insiste em compartilhar a vida na língua que só ele conhece. O pássaro só canta quando o homem sai para trabalhar; o pássaro só pode ser pássaro durante duas ou três horas do dia, enquanto a mulher não chega em casa. Ela também conversa com ele, mas enquanto ela fuma, o pássaro pode ser um pássaro no silêncio.

  Meu avô falava com as vacas. Juro. Era um homem analfabeto, mas com um amor profundo aos discursos; a capacidade comunicativa dele era surpreendente. Ditava cartas, listas, ofícios, toda a sorte de documentos, que escritos nunca alcançavam a magnitude da sua oratória. Todos os seus escrivães falharam vergonhosamente, inclusive eu. Era um homem vocacionado às palavras, sem estudo, sem escrita, mas muito atento ao mundo e tudo aquilo que o cercava. Conversava, com a mesma desenvoltura, com os seus patrões e os empregados, com os políticos, os vizinhos, os filhos, o dono da venda, o motorista, o padre, os ateus, os protestantes, o retirante, os funcionários da rede ferroviária, os viandantes, os amigos da neta universitária. Meu avô falava muitas línguas, todas que falassem com ele.
  A palavra era o seu facão, que cortava os arbustos, enquanto ele se embrenhava na mata que é o outro. A escuta era a sua lanterna, que iluminava os recorrentes breus que cercam as distâncias.

  Homem da lida pesada, viveu para e no campo e nunca falou sobre coisas humanas às vacas. Meu avô ouvia as vacas. Atravessávamos quilômetros de terras, plantações, serrados, algumas montanhas e antes de atravessar a porteira, meu avô reconhecia o mugido de cada vaca que ele cuidava. Quando meu avô estava em meio às vacas, ele mudava, era mais sério, concentrado, quase não falava, não impunha sua humanidade ao que não era humano. Meu avô servia às vacas, fazia partos, aplicava medicamentos, trocava o sal dos coxos, fazia curativos e acalmava os medos que visitavam o curral,  acalentava o mistério que é o de ser uma vaca; sobretudo, não dava-lhes nomes humanos.
- Porque vacas são vacas.
  Eu não sabia o que isso significava, mas hoje eu sei.

  O homem do apartamento de cima fez um retângulo amarelo e cercou o fundo da gaiola, para não sujar a minha janela, para que nenhum alpiste caísse sobre a minha cabeça, nas manhãs. Mas o homem não me poupou da inquietude do retângulo, da visão da solidão angustiada do pássaro cuja língua não é só incompreendida, mas amplamente ignorada.
  Centímetros quadrados de limpeza, água, comida e a comunicação que não é divida me parecem tentativas de amor frustradas; grades mais violentas que as da própria gaiola.

  Os investimentos sucessivos de aplacar a própria solidão são o que mais afastam o homem do seu pássaro de gaiola de apartamento.
  Aprender a língua de alguém a quem se ama é a única possibilidade de adentrar pela porteira sem a violência da submissão. De tudo, se a língua estrangeira for distante demais é porque a porteira não nos cabe nas mãos. Vamos a outras terras e deixamos livres o rebanho que não pudemos compreender.
  Meu avô, o homem que falava qualquer língua, sem nunca ter ido à escola, não perguntaria a um pássaro que horas humanas cravava no relógio. Ele que falava javanês, se algum javanês aparecesse por aquelas bandas, não perturbaria um pássaro com uma língua limitada dessas. No apartamento de cima, a clausura do amor humano, ignorante à língua que ele aprisiona, é a mão que balança o retângulo amarelo sobre a minha cabeça.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 04 de maio de 2018

Querida Amanda,

Que texto, hem!!! Que texto!!! Fala de um amor incondicional, universal, doador, sem em nenhum momento citá-lo nominalmente, e nem precisava. Há nele a candura e a dureza, a transparência e a verbalização deste sentimento nobre, vulgarizado pelo prazer, pela perversão, etc. Andamos precisando de mais textos assim.

Claro, minha percepção acaba sendo sempre por analogia, como acho que deve ser a de todo mundo. Paulo Coelho, mago, poeta e escritor, fala sobre isto no seu livro O Alquimista. Tomo a liberdade de citar um trecho:

“Então foi como se o tempo parasse, e a Alma do Mundo surgisse com toda a força diante do rapaz. Quando ele olhou seus olhos negros, seus lábios indecisos entre um sorriso e o silêncio, ele entendeu a parte mais importante e mais sábia da linguagem que o mundo falava, e que todas as pessoas da terra eram capazes de entender em seus corações. E isto era chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o próprio deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma força onde quer que dois pares de olhos se cruzassem como se cruzaram aqueles dois pares de olhos diante de um poço. Os lábios finalmente resolveram dar um sorriso, e aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou sem saber durante tanto tempo em sua vida, que tinha buscado nas ovelhas e nos livros, nos cristais e no silêncio do deserto.

Ali estava a pura Linguagem do Mundo, sem explicações, porque o Universo não precisava de explicações para continuar seu caminho no espaço sem fim"...

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 06 de maio de 2018

Querido Paulo,
acho que falta ao mundo querer compreender, minimamente, o outro. Sem urgência, sem precipitações...só ouvir; e você faz isso aqui. Muito obrigada! É sempre bom recebê-lo por aqui, com a sua gentileza de sempre, olhar generoso e as partilhas, com referências e fontes diversas. Li bem poucas coisas do Paulo Coelho, acho que três livros somente, O Alquimista mesmo não li e o trecho que me apresentou é bem bonito. Gracias!
Ótima semana!