sexta-feira, 4 de maio de 2018

Valsa na casa cento e vinte um

  Um homem velho sai pela porta da frente da casa velha, fecha o portão enferrujado e entra no seu carro antigo estacionado na calçada, usa um casaco marinho desbotado e pisa com sapatos bem gastos.
  Eu não sei o quão velho ele é, vi o rosto dele, a única vez antes, sem querer, enquanto eu olhava para casa, que sempre pareceu abandonada, com as janelas fechadas, os vidros tomados de poeira, o jardim com mato alto e um emaranhado de ervas descendo pelos troncos das duas uma palmeiras; o carro, parado, na garagem escura.  Eu o vi na varanda, nesta outra vez, em frente ao carro, segurando uma caneca, contemplando a vista selvagem do seu jardim, devassando a minha curiosidade. Abaixei a cabeça de surpresa e vergonha. Tem um homem velho na casa, foi o único pensamento que me tocou o ombro antes que eu desviasse os olhos.
  No domingo, pela manhã, o  carro finalmente saiu da casa que não era vazia. Sob o sol, o carro não parecia tão velho e o homem tinha uma velhice menos grave, menos misteriosa e mais autêntica. Uma velhice que não pertencia a um outro mundo, mas era bem atada a este mesmo meu; um homem com mais passadas do que eu somente. Uma senilidade que não apavora, bem ao contrário, consola e aproxima de um doce prenúncio de dignidade e vida solar, depois do jardim.

  Ele acelera o carro e parece ter pressa para alcançar mais história. A casa, em decadência aparente, o jardim que cresce indomesticável e o portão enferrujado ficam para trás, cada um envelhecendo a seu modo. E no que antes eu enxergava abandono, agora penso que é a liberdade de acontecerem sem intervenções; seguirem o caminho, frequentemente rejeitado, de uma passagem sem contenções.
  Para quê mais uma camada de tinta na fachada, a transparência dos vidros e uma demão de cromato de sódio nas grades e portão, se sempre ficam para trás? A quem serve a estética do novo, se o morador não é mais jovem?

  Da outra vez e também desta, só o homem saiu da casa. Procurei por outras sombras, outras vozes, outras aparições surpresas, outras mãos com canecas, mas ninguém habita a casa cento e vinte e um, além dele. Tentei imaginar o interior da casa, se entrava uma fresta de sol, pela janela da sala, nas manhãs, se tinha porta-retratos numa estante repleta de souvenirs, um guarda-roupa marrom com cachecóis nas gavetas, outros casacos desbotados pendurados em cabides e pares de sapatos velhos, como o que ele calçava, debaixo da cama. Ou outra casa completamente diferente, menos estereotipada, sem lembranças em papel, couro, metal ou porcelana; com filtro de água mineral de galão, pratos coloridos e talheres com designer moderno, sem fotos, sem ímãs de geladeira, livros antigos no fundo da estante ou medalhas na parede.

  Sob o sol, sua velhice não parecia triste ou abandonada de afeto, mas também não parecia alucinada e satisfeita. Era só a velhice num homem, que não parecia desistente, mas também não resistia muito ao tempo; e se resistisse, adiantaria?
  Quantos reparos ele teria feito na casa, ao longo do tempo vivido nela, se estiver lá há muito? Quantas vezes aparou a grama até que se tornasse um mato denso e robusto? A quem reclama a limpeza das janelas e se o faz, de quanto em quanto tempo?
 A casa pintada e os jogos de futebol; os vidros brilhantes e as cervejas do sábado à tarde; a grama cortada, os arbustos aparados, os círculos de pedras brancas em volta das roseiras e as conversas longas ao telefone. As paredes descascadas e os remédios e consultas; as dobradiças barulhentas, sem lubrificação e  as horas a menos de sono, o emaranhado de vegetação bruta e as idas mais frequentes ao banheiro durante a noite. A música do disco que ele ouve, acompanha a sua dança e não o contrário.

  Se ele coloca uma música antiga, vai dançar os mesmos passos de quarenta anos, os sapatos eram mais novos, é verdade, mas a coreografia se repete. O movimento de uma valsa na vida é o mesmo de uma onda no mar. Um começo com medos, o medo se afasta e aproxima-se de novo. A solidão da infância, a vida adulta frequentada e o isolamento de novo. Vai e volta. Nada é só partida.
  Mas se esticar um pouco mais o braço talvez alcance, talvez afaste para longe; o tempo pertence mais às pernas do que aos braços.
  O que é a velhice, senão a repetição mais desbotada de outros tempos? 

  Os ossos desgastados como as grades da varanda; de pé, mas fragilizados. A visão menos límpida como os vidros das janelas, que já sabem o que tem lá fora, mas perdem os novos detalhes.
  O homem tomado pela passagem do tempo, sem podas, sem hesitações, como as extensões de flora que se espalham pelos galhos das palmeiras do jardim.
  A quantas chuvas mais o telhado colonial resistirá? Quantas canecas mais até os invernos não serem mais?

  A velhice do homem é habitada pela casa que resiste, mas também entrega-se ao inevitável. A valsa na casa cento e vinte um não é triste, também não é de uma alegria  fantástica; só é. Certa, bonita e compassada, como a maior parte dos tempos e contratempos de qualquer dança.
  Num dia, fui surpreendida com a vida que me olhava da casa que absolutamente não era  abandonada. Noutro, fui assaltada pela velhice sincera sob o sol de domingo.
  Aprendo a não me importar tanto com a ordem no jardim à medida que também cresço sem os limites das tesouras.Tenho o hábito de conservar meus pertences, casaco marinho e sapatos, acho que ando na mesma direção de uma maturidade nua, sem disfarces, ao menos até aqui.  A valsa na casa cento e vinte um é a única verdade inevitável até aos domingos, com sol e uma música que obedece aos passos.




2 comentários:

Sofia de Buteco disse...

Lindo. Lindo como vc sincroniza seu texto com o texto-música...em todas as postagens. Sempre conheço novas trilhas aqui, também sonoras...Do se ALL have a Hunger? - me pergunto...

Amanda Machado disse...

Ah...obrigada Amanda!
Acho que sim, espero que sim...acho que só a fome insaciável (não a física, claro) poderá nos levar a outro lugar. Melhor. Diferente.
A música talvez seja uma fome minha (entre outras)...rs