segunda-feira, 7 de maio de 2018

Eu nunca escrevi um poema

  Eu não escrevo poesia, minha mãe também não escrevia, minha avó e minha irmã também não; talvez uma prima que mora em Brasília escreva e eu não saiba, porque ela não nos mostra seus poemas.
  Eu procuro, na noite, no escuro, em gavetas difíceis de abrir, ou porque estão trancadas e eu não encontro as chaves ou porque estão demasiado abarrotadas e emperram ou porque suas corrediças precisam ser lubrificadas,  alguma caneta cuja tinta ainda não tenha acabado. Procuro também um bloco de papel ou folhas soltas e lanço a luz de uma lanterna sobre a minha mão direita, depois, escrevo o que sei, o que posso, o que consigo. Na maior parte das vezes é muito difícil, é um trabalho de encontrar pedras, carregá-las, quebrá-las grosseiramente e, somente depois, esculpir com muita delicadeza e alguma força, algo que seja tão valioso quanto a pedra pura. A luz é fraca, a caneta falha, as linhas da folha acabam e eu não fiz um poema. Olho para  pedra esculpida, que nunca se torna o que eu esperava,  perto dos cacos, dos erros descartados, dos pedaços de pedra bruta e duas gavetas aparecem abertas, numa guardo o apaziguamento  pelo trabalho feito e noutra transborda a angústia por toda pedra que ainda não foi arrastada.
  Nenhuma de nós escreveu um poema, mas todas sabemos das pedras que precisam ser carregadas no escuro.

  Eu nunca fiz um castelo na areia. Talvez porque eu já não tivesse idade mais para começar a fazê-lo quando fui à praia pela primeira vez. Ou porque as minhas mãos são menos habilidosas do que outras ou porque simplesmente eu não gostasse de castelos. De recolher conchas eu gostava, abaixar na faixa de areia molhada, pegar uma a uma e me espantar com a diversidade de possibilidades de um concha ser concha; nunca são iguais. Guardei uma centena delas, até não fazer mais sentido ter no guarda-roupas uma amostra seca do que é o mar. O saco plástico em que as guardei não era um mausoléu digno das peculiaridades incrustadas numa concha, me desfiz de todas no momento mesmo da percepção. Nunca mais trouxe para casa o que não pudesse ser a mesma coisa daquilo que ela era em outro lugar. Amamos errado assim, transportando o que não sobrevive, em toda sua plenitude, noutra geografia.  
  Eu não fiz castelos, mas eu desenhei na areia, sem nunca o mar saber de mim. Fiz fendas estreitas com os pés, afundei os dedos da mão e grafei letras, que se apagaram minutos depois, como se nunca tivessem estado ali.

  Eu nunca saltei de paraquedas. Porque eu nunca estive numa viagem em que eu precisasse abandonar o comboio antes do tempo ou tivesse que invadir um campo inimigo ou salvar algum companheiro prisioneiro. Não saltei de paraquedas porque não busquei ainda noutro lugar, o que eu não tenho encontrado aqui.
  Não coloquei nas costas uma mochila em que coubesse toda a minha redenção, não coloquei sobre os meus ombros a possibilidade efêmera do voo, que eu eu ainda tento aqui debaixo. Eu não saltei de um avião, porque ainda aperto a poltrona quando a tripulação avisa que vamos decolar ou pousar.  Porque ainda me apego a alguma segurança imaginada; braço da poltrona ou solo.

  Eu nunca dei uma bofetada em ninguém. Porque eu nunca culpei mais o traidor do que a mim mesma, o mentiroso do que a minha ingenuidade, o aproveitador do que a minha incapacidade de negar, o estúpido do que a minha vulnerabilidade.
  Eu nunca dei uma bofetada, porque não recebi nenhuma ou porque não tenho um impulso suficientemente forte nos punhos ou porque senti tanta dor que não consegui desferir nenhum golpe em retribuição ao recebido.
  Eu nunca lancei a minha mão aberta sobre a face de ninguém, porque tenho nas palmas, as linhas inscritas de vida longa, derrapadas sucessivas e alegrias porvir, que um dia uma cigana leu. E eu não quero macular uma leitura tão generosa, que me custou apenas três reais em moedas. 

  Eu nunca contei o segredo de ninguém. Porque os segredos dos outros não são passíveis de julgamentos, negociações ou esquecimento de lealdade. A confidência desesperada de alguém é um envelope que deve ser mantido fechado, debaixo de uma pilha de livros numa gaveta com cadeado.   Pode pesar uma gaveta, pode, inclusive, empenar um móvel inteiro, mas só pode ser entregue ao próprio dono, quando ele requisitá-la.
  Uma confidência partilhada é laço, título, bodas, pacto de silêncio voluntário, sem cartório, assinaturas, apostas.
  Eu nunca dividi o segredo de ninguém com outro alguém, porque um segredo sussurrado deve atravessar martelo e bigorna para descansar na cama quente e segura da fidelidade. 

  Eu nunca me debrucei sobre a janela de um apartamento do trigésimo andar. Porque tenho medo de altura, porque prefiro estar de longe, se contemplo a vista. Ou talvez porque sempre paro no vigésimo sétimo andar, que é o máximo de andares do prédio mais alto da cidade.
  Eu nunca respirei o ar, ouvi os sons, vi a paisagem do alto de um prédio de trinta andares, porque visito sempre os prédios menos altos, por precaução e pernas trêmulas, quando muito afastadas do horizonte.
  Mas eu já me debrucei sobre uma janela de apartamento do décimo segundo andar e gritei para alguém que acabara de descer, por impulso, por desespero, por um pedido que nunca se realizou.

  Eu nunca escrevi um poema que não fosse para minha mãe, minha avó, minha irmã ou minha prima, se ela não escreve poemas, claro. Eu nunca fiz poesia para alguém que precisa desesperadamente de poesia, porque ninguém precisa. Eu trabalho à noite, no escuro, sob a luz de uma lanterna que a cada minuto está mais fraca, para ser lida durante o dia, no intervalo do trabalho, enquanto o bebê dorme, o telefone não chama, a mudança não pousa sobre a mesa do enfadonho escritório. Eu construo castelos possíveis em areias menos prováveis, estou a beira de um desfiladeiro com os pés cravados na segurança das suas margens; não salto. Espanto moscas com as mãos abertas, mas nem elas eu esbofeteio, guardo os segredos que me contam até poder, um dia, soltá-los delicadamente da janela de um apartamento do trigésimo andar e encher a cidade com pétalas suaves de segredos que precisam ser desaguados.



2 comentários:

Kellen disse...

E aquece a alma da gente ❤️. Linda! Vontade de te dar um cocão.

Amanda Machado disse...

Que bom ser um pouco quente...
Cocão é uma estranha forma de demonstração amorosa, mas a gente aceita. <3
Beijos