sexta-feira, 11 de maio de 2018

Maquete de ausências

  O sorriso da fotografia não sorri mais, não com o som singular, com as variações de timbre e com as ondulações sutis dos lábios. Não mostra mais os dentes da arcada superior, enquanto cobre os da inferior e não produz mais pequenas depressões nas maçãs do rosto. O sorriso é reto, sem desvios, sem nuances. Sorri todas as felicidades em um só quadro. O único sorriso estanque que é possível, agora, às onze da noite numa estante, nesse país.
  Os tapetes, a cor das paredes, as cortinas da casa mudaram, a sala de jantar quase ninguém frequenta mais, outros sorrisos do quadro se movem e envelhecem demasiado, mas um sorriso emoldurado permanece; intacto, silencioso, bidimensional, feliz eternamente. O único que sorri todas as segundas-feiras, de maio a maio, entre um golpe e outro, nos dias que nenhuma música toca e os elevadores estão quebrados, na volta do supermercado. Os lábios que não abandonam a alegria, que não mentem e não pronunciam adeus.

  Castanho acobreado. Eram duas cabeças com a mesma cor. Um par. Nos dias de céu mais claro, eles eram mais vermelhos, intensos, indiscretos, radiantes. Nos dias cinzas, era um par marrom, delicado, menos efusivo. Ela menor do que ele, ele menos rápido do que ela. Ele com uma bengala, ela com meias de compressão. Duas cabeças de cores idênticas, quantos gostos, aproximações, sonhos e pratos de mesmas proporções eles dividiram? Somadas suas passadas de toda a vida partilhada, dariam volta no globo terrestre?   Eles dividiam um mesmo tubo de tinta para cabelo, a cada quinzena, imagino eu, que nunca vi raízes brancas nem cobre desbotado, caminhavam com passos diferentes, na mesma calçada e, quase sempre, passavam em frente aos carros de mãos dadas.
  Agora, só vejo uma cabeça, cujo vermelho é mais intenso, as canelas sob meias elásticas marrom claro e os passos solitários. Caminhar, atravessar a rua de mãos dadas com a ausência e tingir os cabelos com um tubo de tinta que sempre dura demasiado. As duas partes de tinta numa cabeça, quinzenalmente. Sob o sol, a mulher é fulgurante, sob nuvem, é ainda mais modesta sua cabeleira marrom, perdida de um par antigo.

  Conta pouco saber sobre duas mulheres conversando em varandas de prédios, cujas calçadas são opostas. Conta menos ainda, as amenidades que partilham em voz alta, tão publicamente, como se estivessem numa recepção de consultório médico, em uma praça, ônibus. Uma pergunta para a outra se ela esteve dormindo sob o sol e esta explica que estava, na verdade, lendo, de cabeça abaixada -  o que nunca saberemos se é verdade -  conta algumas partes do livro e a outra diz que não é muito de ler.
- Não tenho vista para isso.
  Conta pouco saber que uma das mulheres é funcionária de um dos apartamentos com varanda e a outra é uma professora aposentada, que mora na outra calçada e os filhos moram no exterior. Conta menos ainda que os diálogos amenos, entre ambas, incomoda alguns vizinhos. Mas conta muito saber que uma das mulheres foi calada, porque foi demitida e a outra silenciada, porque não conversou com ninguém das varandas da mesma calçada. Temporariamente sem suas vozes. Conta muito saber que, às seis da tarde, elas tomam café na varanda da professora, agora, todos os dias, depois do trabalho da mulher que não se acostumou a ler. Conta mais ainda, saber que quase toda a rua gostaria de ouvir as amenidades que as duas mulheres, agora, falam em voz baixa.

  O homem se abaixa e acaricia o cão, que antes inquieto, agora devolve um olhar manso para o dono das mãos macias. O cão tem ouvidos sensíveis demais ao som das buzinas, o homem o acalma. O homem tem as pernas duras demais para avançar os caminhos e o cão o leva diariamente, em dois turnos, para conhecer mais da rua.
  O cão e o seu homem, o homem e o seu cão, as ruas são menos barulhentas depois do afago acostumado; a vida é menos temida, com os arrancos, de curiosidade, do cão. A coleira não assegura nenhuma disciplina canina, mas apoia a hesitação humana.

  Uma mãe recente, de cabelos grisalhos e uma filha recém-chegada, que já vai à escola, estão atrasadas. Outros pais, com filhos menores e cabelos com mais melanina e meses a mais de experiência, chegaram quinze minutos antes, dez, cinco ou, no máximo, na hora exata. A mãe, contente, com camisa social e mocassim, e a filha, exultante, de tranças e casaco de unicórnio se atrasaram para a aula de sexta-feira.
  Nenhuma pressa, passam em frente ao muro colorido, sorrindo, trocando olhares, apontando sardas uma no rosto da outra, desobedecem horários, brincando de se adivinharem; encantadas. Mãe e filha, recém-descobertas, se atrasam para aula e não se importam. A escola espera, a mãe já esperou muito, a filha também. Comparsas de um atraso, camaradas de uma pequena insubordinação; mãe e filha experimentadas de esperas.

  Um poeta no telejornal da tarde é entrevistado em frente à câmara.
- Vai declamar? E poesia numa hora dessas?
  Não. Cidadão indignado ele dá respostas em prosa, não usa uma metáfora sequer, nem rimas nem métricas, nenhuma musicalidade. Um poeta que fala as mesmas palavras de um funcionário público, farmacêutico, engenheiro, empresário, motorista. Um poeta que conhece a fome que pode ser saciada, faz exames de sangue, paga impostos, já teve sua carteira roubada e, agora, cobra as promessas não cumpridas, a verdade nas palavras dos homens que não fazem poesia.
- Por que não?
  Um poeta, na escadaria de um prédio antigo, que anuncia no jornal do meio-dia a materialidade da vida, a negação aos direitos básicos humanos. Um cidadão que partilha das mesmas requisições remotas de seus iguais. Um poeta é um homem, não sai um e entra o outro; as duas personas dividem a mesma pensão.

  A cidade repleta de partidas inesperadas se reintegra em encontros predestinados. A solidão da meia-noite, um dia, acaba no café da manhã e pode voltar no jantar.
  O sorriso permanente na estante não é mais feliz do que as faces que estão sempre mudando. O par castanho acobreado, de repente, é um solo que segue andando. As amizades que transgridem os limites e afugentam silêncios, as famílias que nascem das esperas e aprendem o quanto os minutos são preciosos, o poeta e a sua voz humana que fala também pelos que nunca leram um soneto.
  As ausências também cimentam pontes, os vazios também abrigam nos temporais, as esperas não têm que ser passivas, elas também podem atravessar uma rua.





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