domingo, 3 de junho de 2018

Meio corpo de porco sobre um outro corpo

   O caminhão não para exatamente em frente ao mercado, porque a essa hora o trânsito na avenida é intenso e, mais ainda, no último final de semana, com a fila no posto de gasolina da esquina. Mas estaciona na rua paralela à entrada; trinta passos de distância entre a porta do caminhão frigorífico e o supermercado, sei porque contei enquanto caminhava. Homens de roupas brancas e galochas de borracha descarregam a carga duas vezes por semana, antes das dez horas da manhã. A precisão é mais deles do que minha; às vezes acompanho o caminhão estacionando, noutras, ele partindo e em algumas, ele está parado, aberto e os homens se movendo em volta dele com agilidade; quando a cena flagrante é esta última, passo pelo asfalto. Um pouco para não atrapalhá-los, um pouco para vê-los melhor e acompanhar a sincronia de uma coreografia ampla de braços, pernas, o abrir e fechar das portas, os desvios que os transeuntes fazem e os pedaços mortos nas costas operárias.

  Ao final do descarregamento, dois dos homens entram no caminhão e vão embora, só um entra no supermercado e não o vejo sair, imagino que seja o único que trabalha no açougue dali. Duas vezes na semana, exceto na passada que foi apenas uma, três homens vestidos de branco, com galochas de borracha e avental, também brancos, passam por mim e não me veem, caminham na mesma avenida que eu, mas apenas cento e oitenta passos, em média, se precisarem ir e voltar ao caminhão frigorífico por seis vezes e não me atropelam, mesmo sem saberem de mim.
  Ontem, quando eu caminhava, os três já tinham saído do supermercado e só um descarregava a última peça, enquanto os outros dois fechavam a porta traseira do caminhão e subiam na sua boleia e o único a não ir embora trazia nos ombros meio corpo sem vida, completamente abandonado aos músculos de outro. Era meio corpo de porco sobre um outro corpo. Porque vejo só por uma perspectiva, meio homem, somente sua frente, meio porco; ideia inteira de uma morte e um trabalho. Quem alimenta quem? Qual dos dois vencerá?

  Passamos muito próximos, eu no asfalto, ele na calçada, o homem não me viu, mas o olhar do porco pareceu cruzar com o meu. Visto como eu o vi, não parecia morto, talvez um pouco entorpecido, calmo, consciente do próprio apagamento; dormente. Parecia um porco exausto nos ombros do homem, desistente ou só descansando sobre um outro corpo; embora não fosse colo, a parte humana do afeto, era um ombro, não dá acalanto, mas oferece consolo.
  O olhar profundo do porco com o meu, surpreso, despreparado e curioso. Meio porco, talvez de olhos fechados, me olhava sem me pedir nada. O meio porco, em corpo, atravessava a minha avenida sem me atropelar, mas me levando. Meio porco, que parecia sonolento, entrava no supermercado e ninguém se comovia com uma despedida no sábado, de pouco sol e de carros com tanques desesperadamente vazios.  Porque a morte se parece com sono, ao menos as que conheci. Porque a morte naturalizada de um porco não produz colisão alguma, na maioria das vezes, e o trânsito flui com tranquilidade.

  O olho do porco devia estar fechado, mas tive a impressão secreta de que ele me via. Porco, porco, porco. Passei por ele e vi sua pele rosada de um lado e carmim muito forte de outro, cheiro de sangue, cheiro de chiqueiro molhado, eu não sei o porquê de um olfato tão apegado à memória. Escutei seus gritos de morte; porque uma só vez  que a voz de um porco em momento derradeiro de sacrifício chega aos ouvidos, nunca mais vai embora. O som é terrível e a imagem produzida por ele é torturante. Da cozinha da minha avó, eu ouvi essas vozes uma só vez e, depois de algumas horas, eu a vi costurando o corpo que nunca voltou à vida.  Eu tive esperanças até o corpo ser assado.
  Ontem, os ombros do homem me levaram à cozinha que não existe mais. Mas também aos gritos, ao cheiro da vida recém-molhada e ao fim, que numa mesa de domingo, quase não parece trágico. Continuei o caminho, andava sobre a morte do porco, mas sobretudo, sobre a minha vida. É assim, não é? As várias mortes com as quais cruzamos e a vida que nos chama; caudalosa, às vezes, desértica, noutras.

  Como os homens, também transito sobre os mesmos passos, mas apenas uma vez. Ida e volta. De frente para o vento e, depois, de costas. Na volta do meu caminho, o homem dos ombros que carregaram o meio corpo, estava sentado na calçada da porta lateral do supermercado, recostado na parede, tomava sol e um copo com leite.
- Deve ser ele.
 Reconheci-o pelos pés pequenos, que em outros encontros já tinha capturado a minha atenção. Ele é alto, braços muito fortes e tem pés pequeníssimos. Tomava leite sob o sol, o homem que levou nas costas o porco que atravessou os meus olhos, enquanto eu ganhava a avenida. Descansava, se alimentava, matava a sua sede e será se pensava no porco? Quanto tempo demora até alguém se acostumar a carregar um porco calado, sonolento, vulnerável e sem vida? Teve ele uma avó que costurava porcos, numa cozinha de onde se ouvia as vozes dos porcos? O que pensa o homem, quando sustenta outro corpo desabrigado de qualquer energia? 

  Um copo de leite e a absolvição de uma culpa que não existe. Não foi ele quem terminou com a vida, não foi ele quem caminhou cem passos até o porco, durante alguns meses, para alimentá-lo e depois determinou o fim dos seus dias. Não foi ele quem estacionou o caminhão na rua paralela ao supermercado, abriu a porta traseira e entregou um porco para um homem de roupa branca. Não foi ele quem me olhou na avenida, com a profundidade de olho,  que nunca mais se abrirão, e não me pediu nada.
  Um corpo, um porco e a sua impossibilidade de, também, sentar-se as dez da manhã na porta do supermercado. Será o leite puro, com açúcar ou culpa? Será o leite frio, morno ou anestesiado de sentido? Será um leite branco de esquecimento ou resignação?

  O homem de ombros fortes e pés pequenos, sentado na calçada às dez da manhã com um copo de leite nas mãos, de repente, me vê, mas não sei se enxerga, estou debaixo da luz e ele fecha os olhos pela claridade. De olhos assim, fechados, tão pequeno assim, abaixado contra a parede, parece tão vulnerável quanto o porco. Um corpo inteiro  de um homem sobre a calçada que eu só evito, para assistir de longe, quando há movimentos intensos e sincronizados. Corpo inteiro de um homem que eu nunca tinha visto descansar, logo pela manhã, depois de um trabalho tão árduo; carregar, pela última vez, uma despedida para ninguém.
  Meio corpo de porco sobre um outro corpo na manhã de sábado, carros com tanques vazios enfileirados pela falta, um copo de leite e a vida chamando para passar sobre ela,  voz que grita sempre mais alto do que os porcos da casa da minha avó. Ainda bem que eu tenho ouvidos  apurados para ela.


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