sábado, 23 de junho de 2018

A coragem usa crachá

  Quantos passos levam-na à rua, a atravessar uma avenida, uma ponte e a minha vida? Quantas
vezes os pés e as partículas de poeira se encontram diariamente quando ela sai, levando coragem, uma garrafa d'água e o endereço?
  Ela precisou de quantos passos até se afastar do medo? Ou é um exercício diário que ela ainda prática enquanto caminha? Sabe sobre o medo ou o esqueceu no canto  da memória cuja sombra se alastra um pouco por dia?
  Quem anota o endereço dela no papel e o oferece todas as manhãs? Quem confia que ela não o perderá  e chegará em casa antes de servirem o almoço? Quem, com tanto amor, é capaz de deixá-la ser quem ela é todos os dias, sob o risco dela mesma não saber quem é no meio do caminho? Nada disso eu sei.

   Mas sei dela de rosto calmo e olhos muito abertos de curiosidade por um mundo que é o mesmo, mas no qual ela encontra novidades a cada passo, porque o ontem para ela já não existe. O dia passado é poeira na sola do sapato, é um lugar que a memória finge não conhecer. Só o instante é claro, é passível de leitura, emoções e atravessamentos. Ela lê placas, olha os rostos diretamente, sem disfarces, para por alguns minutos em frente às portas dos comércios e sorri, pacífica, translúcida, sem a pressa dos outros transeuntes.
  Quem é essa Deusa da calmaria que desfila sem urgência pelos sete quilômetros de avenida? Com quem aprendeu a desafiar o frio, enganar o tempo, se esconder do próprio apagamento e seduzir a gente?

  Ela me vê todos os dias pela primeira vez, me cumprimenta com a mesma gentileza do primeiro dia, mas não me reconhece ou sabe que passamos, uma pela outra, há anos. Sei quando ela retoca a tinta no cabelo, quando o corta, quando sente mais frio e coloca uma blusa a mais, sei sempre o quanto de água ela já tomou desde que saiu de casa, porque carrega uma garrafa transparente de plástico, sei do papel no bolso da sua calça de moletom cinza, verde-musgo ou da vermelha, com a qual a vi nesta manhã. O papel, ela frequentemente tira do bolso, espreme os olhos para leitura e o guarda de novo, como se tê-lo achado fosse sempre uma surpresa.
  Não tem medo das buzinas dos carros ou dos pulos e latidos dos cães, quando passa pela praça; não se assusta com as arrancadas das motos, com o céu que escurece, de repente, não teme nada na rua. Talvez porque não tenha memória de perigo ou porque enfrenta as surpresas com a firmeza de quem prefere o instante imprevisível à segurança acostumada, dentro do apartamento muito antigo.
  
  Não há medo, ao menos durante o dia, nos olhos alegres dela, a sua mão com o papel estendido, quando o encontra, nunca treme. Parada em frente a um cartaz de uma empresa de eventos para formatura, ela parece ler cada letra bem devagar, alfabetização contínua e surpreendente às sete da manhã, com a avenida ainda coberta por uma camada fina de nevoeiro. Por que tão cedo? Por que todos os dias?
  A cidade já começa a soltar fogos para um jogo em expectativa e ela não modifica a sua rotina de explorar a mesma avenida há anos. As minhas visitas variam, volto e depois desapareço, num dia acordo tarde, num mês não tenho tempo; mas ela, embora eu não possa ver quando não estou, me parece constante e persistente.

  O endereço anotado e a coragem são sua espada e escudo; asseguram a experiência dos seus pés nos mesmos quilômetros da avenida, que é outra, para mim, porque ela existe. São também as armas de alguém que a prepara para sua jornada diária, que confia no que a mulher de memória impermanente pode aprender todos os dias. Amor maior que este eu não sei.
  A garrafa d'água parece pesar um pouco nos primeiros metros, mas ela a esvazia bastante a cada parada. Ela tem uma sede que parece nunca se satisfazer plenamente só com o líquido que carrega. Talvez o azul do céu, os jatos de água que lavam as calçadas, os regadores que respingam nos jardins dos prédios pelos quais ela passa; tudo a hidrate e nutre. A mulher de memória vacilante e coragem nos pés, vive mais porque descobre, um dia atrás do outro, a cidade que já a dela há décadas. 

  Hoje não tinha papel, levava no pescoço um crachá amarrado em um cadarço azul. O endereço anotado mudou do bolso para o colo e a vi, algumas vezes, se surpreendendo com o novo acessório. Desconfio que tenha perdido o papel na exploração do dia anterior, passei por ela, imaginando o que teria acontecido com a perda e se os seus pés acertaram o caminho, sem a proteção de um destino escrito. Não sei. Mas ela me pareceu completamente a salvo das memórias ruins, livre de qualquer desconfiança ou medo.
  Olhou-me hoje como me olhou ontem, inédita, desconhecida, um rosto nunca antes visto. Olhei para ela, nesta manhã, como em tantas outras, com a admiração e a esperança de aprender o seu destemor. 

  A coragem sai de casa, sem ninguém para dizer onde exatamente ela deve atravessar, encontra sempre alguém que aponte ou segure o seu braço e a leve. A coragem não se intimida com as letras que desconhece e as reaprende quantas vezes a vontade de ler requisitar. A coragem tem olhos doces, placidez nos gestos e nenhuma lâmina afiada guardada na cintura ou arma de fogo na bainha. A coragem é gentil com os desconhecidos e teima em conhecer várias vezes uma mesma coisa. A coragem escreve o endereço de casa e coloca-o no pescoço de um ser amado, o ajuda a vestir mais uma blusa, enche sua garrafa com água e abre a porta para o destino de uma outra coragem.
  Temo pelas duas e, num mesmo tempo, admiro-as e rogo que  um dia eu vá aprender a não desconfiar do inseguro. Tenho aprendido a interrogar menos as duas coragens e a continuar a caminhar macio, mesmo quando alguma sombra encobre o meu azul; porque é tão passageira quanto a memória da mulher com o crachá.



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