terça-feira, 19 de junho de 2018

A última vez em que a vi abrir o portão, sorria com dentes falsos

  Não sei quanto tempo ela ainda ficará, posso vê-la abrir o portão pelas próximas semanas, meses ou décadas inteiras. O carteiro ainda poderá encontrá-la na próxima quarta, na sexta, mas na segunda-feira ela não responder mais ao interfone. Posso fazer uma encomenda grande, ela garantir a entrega e desaparecer no meio da sua produção, só partir depois de cumprir com o acordado ou não ir, ainda, depois desse trabalho. Podem gritar o seu nome por seis dias da semana seguidos e ela atender, mas no sétimo, a ausência de resposta ecoar pela rua.
- Cadê ela?
  Ela pode procurar um advogado na quarta-feira e desejar processar o poder público por alguma irregularidade com a sua casa ou resolver se casar oficialmente, depois de mais de trinta anos divididos com o companheiro e na quinta-feira, já ter feito as malas ou levar os dois processos a frente, até o final.

  Ela pode, no nosso próximo encontro, me confidenciar um dos seus planos; se para sempre, se por enquanto ou  até a aposentadoria do marido e o término do tratamento de saúde da sogra. Ela pode sorrir, quando vier me entregar o meu pano de prato que caiu no quintal dela ou pode apertá-lo contra o peito e se liquefazer na minha frente, ainda na soleira da porta. Mas pode também não me entregar o pano, pode deixá-lo exatamente onde ele caiu e, de propósito, seguir seu plano de fuga e me deixar como lembrança um pano de prato, a menos, na minha cozinha.
  Ela pode já ter preparado um lugar, um apartamento de dois quartos na rua debaixo, um menor ainda, com dormitório, sala e cozinha no Centro, uma casa maior para expandir seu empreendimento em outra cidade, reserva em um hostel em algum outro país, cujo idioma ela estudou nos últimos cinco anos secretamente. Mas pode, também, dobrar algumas roupas limpas e arrumar uma mala pequena, fechar o portão pela última vez a caminho de algum lugar cuja rota não seja conhecida ainda. Ela pode escrever essa linha.

  Ela adia uma despedida que já aconteceu. Marca no relógio o tempo de um tempo que não se observa entre números. O tempo de tomar o café já passou e ela ainda continua esperando, em frente ao fogão, a água ferver; talvez a água borbulhe até queimar uma das suas mãos e, então, ela entenda, finalmente, a partida. Ela se prepara para as dores do parto de um filho que já é adulto; quanto tempo demora para entender um parto de quem já nasceu? Ela olha pela janela e espera por uma chuva que já encharcou seu telhado, a terra no quintal, as roupas que ela esqueceu no varal. Caminha pela sala, buscando as palavras certas para uma despedida que adia a cada semana.

  Esperar o tempo certo de adeus, quando ele já aconteceu, é a angústia de um filho que, na noite de domingo, espera pelo final de semana com o pai que não veio buscá-lo.
  A última conversa que deseja marcar não é possível, porque ela já aconteceu, quando nem ela sabia que era a última, mas foi a partir dela que quis ir embora. Só não foi.
  A última conversa, entre choros e rancores muito antigos, é uma farsa, um ponto depois do parágrafo inteiro já terminado há muito, no final da folha, da página ultrapassada. 

A última conversa é uma encenação, uma proposta de dignidade no final, quando o inevitável último diálogo estabelecido aconteceu num dia banal, com a comida esfriando no prato. Engoliram a refeição gelada, lavaram a louça, escovaram os dentes e nem o boa-noite costumeiro chegou, depois da última conversa. É assim, ordinário, na banalidade das horas que os finais chegam.
 Ir embora demanda coragem de abandonar, mas também de sentir-se abandonada algumas vezes, porque se a quisessem como ela queria que a quisessem, teriam-na feito ficar. Fechar o portão pela última vez, requisita mais do que punhos fortes e dedos ágeis; mas aceitação de que a despedida não é tão bonita como gostaria que fosse.

  Duas vezes por semana, desde o início do mês, tenho a visto sair pela manhã e só voltar um pouco antes do almoço, talvez seja sua preparação para a ida definitiva ou consultas com o otorrinolaringologista.
  Ela vai embora, porque eu conheço olhos de partida. Ela vai embora, porque quando a vejo olhar pela janela a espera de uma chuva que já cai, ela não se move, aguardando ainda outra coisa que não sabe o quê. O peso de sentir-se responsável por abrir e fechar o portão de uma mesma casa, como se dessa ação dependesse a sobrevivência do Universo, ainda a prendem a uma mesa quadrada com um companheiro cuja última conversa já estabeleceu. Não sei quanto tempo ficará, mas parece que já foi.

  Ontem eu a vi fechar o portão, sorriu para mim como se fosse me entregar um pano de prato caído no seu quintal, mas não me deu nada. O sorriso era branco, muito; luminosidade de um consultório odontológico e eu entendi que as suas saídas, nas últimas semanas, eram pelo sorriso e não pela resolução da ida. A última vez que a vi abrir o portão, sorria com dentes falsos, mas nos olhos ainda tinha despedida. Ela pode mudar o sorriso para partir ou para resistir em ter mais dias na casa ultrapassada com sorrisos que parecem novos. Ela pode. Ela pode tudo; só não sei se ela já sabe.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

21 de junho de 2018 rá rá rá

Querida Amanda

Ninguém conhece olhos de partida, ninguém vai dentro da retina de outrem, ninguém. Ninguém sabe da dor de outrem, ninguém.

É isto aí!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas, 21 de junho de 2018

Caro Paulo,
Touchè! Mais uma vez, tem completa razão. Só conheceria os olhos de partida, se a narradora fosse também a personagem...só. Não há outra possibilidade. "Ninguém sabe da dor de outrem, ninguém", é uma realidade.

É isto aí! rs
Abraços