sábado, 9 de junho de 2018

A mão que se tem

  A mão é um universo misterioso de tecidos sanguíneos, musculares e ósseos; são articulações e vasos, numa profundidade celular que manicure alguma alcança. A mão carrega linhas, que em algumas crenças são destinos infalíveis; os amores, as luzes, os desaparecimentos, as partidas, os caminhos, até uma viagem ao exterior e um amante estrangeiro podem vir inscritos, por algumas moedas.
  Na mão, a herança de uma prática esportiva, artesanal ou laboral; calos, bolhas, falhas, mutilações, calcificações, dores. A mão e os dedos longos no piano, a mão e os dedos curtos que ajudam na expressão de alguma fala que não alcança sozinha o ouvinte, a mão e as cordas de um violão velho, atravessando duas gerações de mãos e, finalmente, pousando na terceira, a mão e o moinho, a mão e a gola bem passada, a mão e a linha, entrando no buraco da agulha sem demora, a mão e as letras de tinta no papel; as histórias que também estão nela, que não se apagarão quando ela não mais estiver.

  A mão e a vela angustiada aos pés de algum santo, a mão e o buquê de hortênsias em agosto, dezoito, a mão da mãe e a do bebê, segurança primeira. A mão branca, suja de giz, da professora, contornando as primeiras letras no quadro verde, a mão experiente do condutor do ônibus que perdeu a força num dos controles e, de uma só vez, conduziu para o fim vinte e sete vidas. A mão que destrói uma expectativa de confiança, a mão que não chega na necessidade mais atroz, a que atropela com um só sinal, a que silencia e abafa o grito, a mão que ameaça, que vasculha, a mão que se fecha um pouco por dia, por uma lesão nos nervos que ficam longe dela, mas que surpreendentemente a alcançam.
- Síndrome das mãos em garra
   Diz o especialista, enquanto as articulações enrijecem e dificultam os cumprimentos e despedidas.
  A mão de unhas vermelhas, incolores, unhas escurecidas de graxa ou pó de café.

  A mão é uma desconhecida a quem tentamos submeter, como todas as outras partes de músculos voluntários. Mas a mão também tem vontades e desobedece, não quer, não aprende, resiste. A mão tem a vida própria de mão; rebelde, nos evita. Ignora os comandos, ensurdece aos pedidos, apelos desesperados de realização.
  A mão liberta e aprisiona. A mão castiga e consola. A mão aponta placas, letras, palavras no texto, belezas para partilha. A mão jura em falso, esconde os dedos cruzados, na mentira da infância.
  A mão pinta a própria mão na tela, a mão desenha a mão que lhe foi oferecida ou negada, a mão homenageia a mão que a possibilitou realizar o sonho da arte; a mão leva a mão ao museu, a mão consagra o laço afetivo na galeria da posteridade.

  Aquecimento, movimentos circulares, massagem, ensaios em frente ao espelho e a mão detesta ser comandada; erra, falha, distorce a ordem e faz diferente. A mão cria e, de repente, não dá à bailarina a única coisa que esperava dela: obediência. Não faz o movimento.
  É escondida, por meses, atrás de outras partes do corpo, que fingem o movimento que não existe para a mão, ou de outros corpos, cujas mãos são conformadas e harmônicas.
  Não sai, mesmo que não falte esforço. Os músculos não alcançam esse único movimento. Quanto uma dança perde se a única mão não pode ir? Quanto uma bailarina se frustra se uma parte do seu corpo, de repente, estaciona num limite inesperado? A dança acaba na mão que não acompanha esse único movimento? Qual o juiz do fim? Como um corpo perdoará uma parte que não consegue segui-lo?

  A mão não ouve, ignora; pressionada e humilhada desafia:
- Quero ver me limitar. Não vou. Não sei. Esse é um caminho que não posso andar.
  A mão se esparrama sem delicadeza. Uma mão que não é bailarina, uma mão errada, num corpo todo ele dedicado a unidade. Ainda amará a mão que não acompanha ilimitadamente?
  Quando um erro desmorona uma construção inteira de certeza e simetria? A mão não é mais a mão que se queria? Ou a mão também é passível de andar pelas margens? A bailarina que não executa a coreografia, por um detalhe, culpa a mão ou a absolve?
  A mão, às vezes, não realiza o que se espera da sua natureza de mão. A mão, de repente, rompe com a relação harmoniosa de entregar uma expectativa, um pacote encomendado, acostumado a chegar na caixa de correspondências. 

  Não há outra; é esta. Não há desobediência voluntária, simplesmente não pode completar o círculo. Não há como culpar a mão pelo movimento não feito, tampouco a coreografia que só uma bailarina não acompanha completamente.

  A mão decide o destino ou a mão só inscreve a dança noutro universo que não o palco?

  Queria que não fosse o erro, mas é; queria que não atravessasse os tempos, mas atravessa, queria que entendesse o amor da bailarina pelo ofício e ela entende, mas de outra perspectiva. De onde a mão assiste a dança, quais os ouvidos que traduzem as notas das músicas e os tempos dos passos? Por onde a mão errada pode seguir sem deter um sonho? O gesto errático da mão não é o que se planejava para a dança, mas é a mão que se tem, no movimento possível; é aceitá-la desobediente ou insistir em declará-la um erro. A dança se adapta as limitações, a bailarina é quem precisa aprender com a dança a não insistir com a impossibilidade.


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