segunda-feira, 11 de junho de 2018

Escolhi ser chuva

  No meu prédio, os moradores falam três idiomas diferentes: um que é usado nas reuniões de condomínio, muito polido nas primeiras frases, inflamado durante as discussões e, ao final das reuniões, cordial novamente; um outro, menos oscilante, para os encontros no elevador e, o mais curioso deles, o utilizado para pedir favores ao porteiro. Geralmente pequenas infrações, desvios de função, camaradagem que ou pedimos a alguém muito próximo ou a alguém com o qual simulamos intimidade. Não falo nenhuma das línguas, minha inabilidade para aprender os três idiomas é indisfarçável. Alguns dos moradores têm compaixão e intervêm nas conversas que estabeleço, corrigem os ruídos e tentam me poupar de não ser compreendida, outros me desprezam, me ignoram, se preferem surdos e a mim muda, a me ensinarem qualquer um dos três idiomas. Sigo amparada pela minha única língua, aquela tão rica de nuances quanto as três, mas desabitada dos assentos reservados no salão de reuniões.
   Diferentes sintaxes, mas todos os três querem a mesma coisa: convencer ao interlocutor a abraçar a sua ideia. Não sei nenhum porque não quero convencer. 

  Na minha escrivaninha convivem quatro países, aos quais visito quando posso, sem nunca ter tido ao menos um carimbo no passaporte. Aliás, nem passaporte eu tenho, a foto nunca fica suficientemente boa para eu passar pela alfândega estrangeira. Dos quatro países, nenhum eu posso apontar no mapa, porque ainda não estão reconhecidos, mas têm histórias, patrimônios, religiões, afetos e habitantes.
  Na primeira gaveta um só país ocupa todos os cantos, são estatutos, normas, constituição e números de telefones para emergência. Na primeira gaveta, toda a minha cidadania cabe; meus votos, meus manifestos, minhas desilusões.
  Dois países ocupam a gaveta do meio, misturam-se por papéis de chocolate, isqueiros, lanternas, postais e livros artesanais comprados em feiras de rua.
  Um outro país ocupa a última gaveta, são escritos, diários, fotos do cotidiano azulado do país com o qual eu tenho um passado de difícil desapego; um país que foi promessa e mesmo que ela nunca tenha se cumprido é a gaveta que mais abro para consultar saudades.

  Numa pessoa muitas dores coexistem, algumas doem mais aos sábados, outras quando chove ou quando a propaganda de natal começa a passar na TV. Uma dor maçã, manhã de sábado, que é tranquila, sem grandes impactos e comoção; dor introvertida, que não interrompe o sono nem atrapalha o apetite. Pode permanecer por uma existência inteira, sem nunca ser extirpada.
- Melhor não mexer com ela.
  Outras dores são latentes, agudas, que não derrubam, mas incomodam, uma dor de dente que não atinge a arcada; dor que acompanha, mesmo que ninguém escolha sua companhia. Vai embora quando quer, não adianta vassoura atrás da porta, nem desculpas de viagem, mas também escolhe o dia do seu retorno.
  Outras dores doem de uma só vez, intensa e insuportável, um relâmpago que nos coloca de joelhos e parte, sem deixar a dor, mas a memória dela; o medo de que um dia ela volte. Numa pessoa, dores diferentes param carros e atravessam a avenida fora da faixa de pedestre.

  Na canoa que eu remo com frequência há duas proas, cada uma aponta para um lado. Remar uma canoa cuja direção é imprevisível é um trabalho mais para braços pacientes do que necessariamente muito fortes. Pois é ela quem escolhe o caminho. Os remos só facilitam o deslizar dentro da água e a canoeira acompanha os ventos, as marés, os ritmos de cada onda e a proa a ser seguida, mas principalmente, as escolhas da própria canoa.
  Remar sem saber para onde, remar sem ao menos saber a que proa obedecer é um exercício de entrega, aceitação e confiança infinitas. A canoeira é somente um meio, porque a existência é toda ela da canoa, com as suas duas proas divergentes.

  Meu coração está dividido entre dois continentes. Em ambos, ele se sente estrangeiro. Mas num o clima parece se ajustar melhor ao meu corpo, noutro as ondulações do vento parecem massagear as minhas costas. Num, um cachorro velho sempre me espera na esquina para avançar latindo em minha direção, noutro, uma mulher com uma prancheta me espera à porta, pedindo que eu preencha uma ficha; tenho medo dos dois, embora ambos sejam inofensivos e muito menores do que eu.
  Meu coração ama e ignora, numa mesma medida, ambos os continentes, meu coração chora a falta de um quando está no outro e lamenta pelo destino político de ambos os povos das duas terras. Meu coração quer ficar e ir embora de dois continentes largos e distantes um do outro; meu coração tem reconhecimento, raízes e perspectivas de asas em ambos, meu coração não reconhece escolha, meu coração quer tudo, até o cão e a mulher com a ficha.

  Num mesmo jardim, planto roseiras e angústias, as primeiras ajudam a decorar as mudas das outras. Ambas recebem adubos, raios solares e água constantes, não privilegio as rosas, tampouco ignoro as angústias, ambas têm raízes compridas, caules finos, espinhos traiçoeiros e pétalas macias, mas só a angústia continua a ferir, mesmo depois de tirarmos seus espinhos. Já as rosas são bonitas por até três dias depois de colhidas, as angústias resistem mais, mas não enfeitam.
  Num mesmo canteiro, nos fundos da casa em que eu moro, cultivo hortênsias e lágrimas; as primeiras crescem em buquês perfumados na primavera e as outras se esparramam em qualquer estação do ano. Colho as duas no tempo em que estão prontas para serem arrancadas, não escondo nenhuma delas das visitas.

  No nome que escolheram para mim, soube há pouco, cabem dois significados. O de origem latina eu sei há mais tempo e até gostava, mas sentia o peso da passividade; o de ser amada. O mais recente, me libertou de receber e me concedeu só ser. Chuva, em Tupi-guarani, meu nome é chuva. Desde que a minha liberdade foi admitida, tenho me sentido mais dona, mais ativa, mais alguém que não aguarda, porque já é.
 Não espero o amor merecido, não agradeço ao amor ofertado; caio incerta e imprecisa, mas necessária. Desde que o meu nome na língua indígena foi descoberto tenho gostado de chover; a escolha conquistada, de um nome com dois destinos diversos.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 17 de Junho de 2018

Prezada cronista do Nheengatu caipira e dócil
Apoena Amanda, aquela que enxerga longe

Confesso que evoquei Yamandú, o deus supremo tupi-guarani, aquele que existe antes mesmo de existir o Universo, para abençoar esta prosa.

Está linda!

Um abraço!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de junho de 2018

Paulo,Paulo...
Grata, sempre, pelas visitas doces, prosas agradabilíssimas e pelas leituras partilhadas.
Ótima semana!
Abraços