quarta-feira, 6 de junho de 2018

Uma crônica para quem tem pressa

  Doze horas para saber se a vida continuará ou se a despedida será subitamente adiantada; doze.
Passarão quatro e poderemos comemorar discreta e individualmente, porque ainda faltam oito. Passarão mais duas e veremos algum progresso no rosto da enfermeira que sorri para nós na cantina. Mais três horas e ninguém corre, nenhum alarme dispara,  meu coração talvez, porque para o seu, sou só torcida silenciosa.
  A vida encontra um jeito, não é assim?  Seu coração nasceu sem um dos caminhos, o rio vermelho jorrou insistentemente até dilatar uma aorta ao seu máximo. Uma vida inteira com um coração que bateu noutro ritmo e ninguém notou a música que só você tocava. Talvez notassem e achassem bonito; talvez notassem e tivessem medo. Eu achei bonito e tenho medo, agora.

  Sessenta minutos e estamos todos do outro lado da porta. Não, sessenta minutos mais e estamos todos do mesmo lado que você; segurando uma aorta. Segura minha mão imaginária e eu seguro seu coração, batuque destoado do mundo. Queria um samba, agora. Um samba-canção e a gente sorriria, a Portela do Paulinho e a gente choraria. Viu, que eu não sei esperar? Só penso, dou voltas, vou ao banheiro, converso com pacientes, acompanhantes, enfermeiras, médicos, secretárias, veio até uma professora, para um menino que está no andar acima, disse que dá aulas de Matemática, Português, Ciências, História, Artes e Geografia, fiquei admirada, não por ser em um hospital, mas por caber nela tanto conhecimento e tudo para o menino.  Chamou-me para conhecê-lo, mas não sei se sei esperar fazendo novos laços; rompemos quando ela entrou no elevador. Fui delicada, não puxei com força.
  Faltam duas horas, agora. Nunca esperei tanto por uma vida. Quero que passe logo, mas não quero apressar o tempo das coisas. Uma vida correndo por um caminho errado, será que o rio se acostuma com um novo? Em doze horas um caminho será aprendido?

  Cardiopatia grave. Queria ter feito Medicina, queria ter feito Cardiologia. Queria ter feito especialização em cirurgia cardíaca na melhor faculdade do mundo; onde será que é? Entre o diagnóstico, no consultório, e a mesa gelada, da sala de cirurgia, eu queria ter terminado o curso. Seu coração nas minhas mãos. Com muito cuidado eu o atravessaria com as cânulas, as seringas, as agulhas, todo o meu aprendizado de melhor escola de cardiologia. Ele já esteve nas suas mãos por mim. Hoje tenho o meu nas minhas, por você. Queria o seu nas minhas, por nós.
  Doze horas para saber se os seus braços virão em direção a mim de novo ou nunca mais. Judiação de tempo. Castigo para quem não quer perder. Não chorei na sua frente vivo, não quero chorar nem com você de olhos fechados, mas custa não chorar hoje. Amanhã não sei.
  O hospital católico me dá uma paz, uma tranquilidade de pensar que estamos onde você escolheria para receber um milagre. Penso em milagre há meses, penso em uma reviravolta que não aconteceu. Fiquei esperando um telefonema, um raio-X, uma tomografia, um ultrassom que não veio. Tanta coisa demorando nesses últimos tempos; só você está sempre por perto; em cada espaço da minha memória, pensamento e prece.

  Meu medo é só um: que as doze horas não se completem; nem sei o que fazer com as horas que vierem depois, nem dias, meses, nem anos. Meus planos acabam nessas doze horas não alcançadas. Eu sei que eu continuo, só não sei como.
  Meus medos podem ser dois: que depois das doze horas, no minuto seguinte da comemoração, você não esteja. Que engano nos teríamos cometido em soltarmos rojões, que desengano seria uma má notícia nos sessenta segundos depois do alívio; que desilusão não termos mais sua vida do lado da nossa.
 Uma maca passa pelo corredor e eu já acho que é você, alguém abre a porta e já acho que são notícias suas; não, não antes das doze horas. Um padre entra e eu tenho medo que o último sacramento seja seu. Eu não quero para você o último agora. 

  Dez horas e ainda não saberemos se é adeus ou ainda bem; depois, três meses até saber se o novo caminho estará consolidado. Não podemos ter pressa, o cardiologista disse. Temos que ter paciência, o médico do coração nos olhou com pena, enquanto aconselhava tempo de espera. Ele sabe que é difícil; ao menos isso temos em comum.
  A história da Europa em três páginas, na Saraiva tem. Cabe em um livro de menos de duzentas páginas a história do mundo, sob o título idiota de "A história do mundo para quem tem pressa". Tem no shopping, a Saraiva. Pode escolher o que quiser aprender com pressa. Pode matar a fome, pode se apaixonar, sonhar, pode desistir de tudo, pode se divorciar se tem pressa, pode ter um cão e anunciar a venda dele se a pressa para entendê-lo atropelar a relação.

  Um texto rápido não deve ter orações muito extensas, de preferência sem vírgulas, melhor se não houver  descrições como: palavras curtas em papel branco, com margens pequenas em frases de duas linhas no máximo. Sem comparação como: um texto tão rápido quanto um xerox frente e verso da carteira de identidade.
  A minha cidade fica dentro de um vale, teve muitas indústrias não tem mais, tem muitos estudantes, açougues, restaurantes de comida japonesa e salões de cabeleireiros. Esta é a minha cidade para quem tem pressa.
  O peito aberto do outro lado da porta é o dono dos meus pensamentos, preces, projetos, sonhos, o amor mais profundo que eu conheci. Esta é a minha espera, se quiser saber, quem tem pressa. Ter pressa é uma coisa que o tempo não tem; ora passa devagar ora em duzentas páginas com toda a história mundial. O tempo é dono dele mesmo.

  Falta uma hora. Vou ler a história do mundo, ainda que a minha pressa seja por outro conhecimento. Quando chegar na última página, talvez eu não saiba nada que eu não soubesse, talvez a única coisa no mundo que eu quero saber nas últimas doze horas. Por onde seu rio vermelho e tortuoso passa agora?
  A vida deu um jeito por muito tempo e, agora, é ciência e milagre. Os dois segurando o coração do qual eu sou cativa. As esperas são para o amor; o amor é só para quem não tem pressa. Essa crônica era um grito, mas pareceu oração. Então, amém.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Silenciosa, 08 de junho e 2018

O que falar e como falar o que vou falar para você? O mês era março, chovia muito, o dia era 8, de março, na semana anterior havia proferido uma palestra para seiscentas pessoas de uma cidade de cinco mil habitantes, sobre a implantação de uma indústria naquele município. Na semana anterior ... sete dias antes. Haviam deputados, secretários, prefeitos, o povo e seus representantes e eu ali, apresentando um sonho para aquela cidade. Havia o representante do governador, os clubes de serviço e eu ali, duas horas de parlatório e de respostas sobre todas as possibilidades. Não seria a minha indústria, era um projeto de criar um patrimônio de manifestação de prosperidade naquele pequeno município. Era dia 29 de fevereiro de 2010, eu estava ali apresentando meu sonho.

No dia 08 de março estava no shopping, falei para a esposa - não estou me sentindo bem! Olhou-me como olham as esposas, chamou as meninas, e as levei para casa. Fui ao hospital dirigindo, cheguei, fui atendido e a vida se esvaiu pelo meu coração que tinha um processo instalado desde a minha formação no ventre da minha mãe.

Não vi mais nada, mas em determinado momento, naquele 08 de março, não, já estou no dia 09 de março de 2010, data que considero a da ressurreição. estou deitado numa cama de hospital, um enfermeiro entra, fala algo que não entendo e me leva por um corredor que desconhecia para uma sala enorme.

O enfermeiro me deixa à frente e se coloca atrás de mim. Preciso ajoelhar, engraçado isto, tenho a nítida vontade de ajoelhar. Ajoelho, abaixo a cabeça, não há nenhum barulho, estava no silêncio absoluto, impossível de ser explicado. A sala é de luz tênue, estou ajoelhado, não sinto medo ou frio ou fome ou raiva ou pressa, não sinto nada.

Estou de cabeça baixa. Um homem se aproxima, de quem apenas vejo suas sandálias trançadas, não consigo olhar para cima, há uma luz intensa. mas ele está ali diante de mim, e eu vendo suas sandálias trançadas sobre pé nu.

O enfermeiro me puxa levemente e me retorna ao quarto, onde acordo com minha mãe de olhando assustada. Olho para ela, pergunto onde eu estava, ela responde que não sai dali em momento algum. Chorei compulsivamente, entendi o milagre, o encontro, num lampejo entendi a vida em mim.

Meu coração parou por que achou de parar, sem nada que o justificasse. Um ano de cama, um ano reaprendendo a andar e depois o resto você sabe, renasci ao pé da pitangueira da minha infância.

Amar a vida intensamente, pois cada segundo é um presente!

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas das Sintonias, 09 de junho de 2018

Querido Paulo,
O que dizer quando uma personagem, cujo final eu não saberia...embora tivesse grandes esperanças, responde por ela mesma o desenrolar dos fatos? Emocionada, muito.

Que bom que o seu coração resistiu para esse desfecho. Que bom que não teve pressa e parou aqui para um café. "Cada segundo é um presente"...creyo que sí!

Abraços,