sábado, 30 de junho de 2018

Alguém que saiba o que fazer com as rimas

  Alguém que não chore para tentar convencer uma pessoa que quer partir a ficar e que, só por isso, ela espere antes de ir, por mais algumas miseráveis horas. Alguém que não chore por uma ferida aberta no orgulho frágil. Uma pessoa que não chore, escondendo o rosto com as mãos.
  Alguém que não segure o choro em público, que não tenha vergonha de irromper em sentimento  livre quando não tem paredes. Alguém que chore na própria partida, no carro, depois da despedida e reconheça suas águas no espelho retrovisor, sem evitá-las. Que embarque nelas, navegue o tempo de chegada até o outro lado do oceano.
  Alguém que chore no supermercado, durante o trabalho, enquanto confere uma nota fiscal sem erros. Alguém que não vá ao banheiro para chorar, não espere a hora do almoço ou o final do expediente, para quando chegar em casa. Alguém que molhe as páginas de um livro, não porque a história é triste, mas porque o encadeamento das frases são preciosos. Um espectador na sala de cinema que chore com os créditos finais, só porque o filme acabou.
  Alguém cujos versos saibam sorrir ao falarem de lágrimas.

  Alguém que  não se espante com o choro descortinado do desconhecido, que ofereça amparo sem querer interrompê-lo. Que o deixe cortar a fila, entrar no ônibus na sua frente, que ofereça o lugar da janela, que não pergunte as horas, não busque um puxador e um pano para secar o chão molhado de choro, que só desvie das poças, uma a uma, que coloque um aviso para que ninguém caia.
  Alguém que se surpreenda com o empenho lírico da limpeza dos canais lacrimais, com a luminosidade de um rosto emocionado e a variedade dos tons das lágrimas.
  Alguém que não ignore a dor do outro ou a própria; que não queira ser impassível numa guerra que não acontece no seu território ou quando não matam os seus. Alguém que não se sinta apartado do sentimento de um desconhecido; só porque não fala a sua língua.
  Alguém que saiba fazer rimas, mas que não use todas num único poema.

  Um dia que conforte a perda mais recente, que não a apague, que não a supere, que não resista tanto contra a sua força; só tranquilize com um nascer do sol de outono, cujos raios atravessem a transparência dos vidros do coletivo, as persianas do escritório, a camisa dobrada nos punhos.
  Um dia que seja uma sucessão de pequenos sucessos: o café esteja bom, a comida ainda quente, o elevador não esteja abarrotado, a chave não agarre no portão, os carros parem na faixa de pedestre, no sinal amarelo. Um dia inteiro que respeite a perda; que seja suave estar nele.
  Uma manhã que cure da noite mal dormida, que faça sonhar no banho, durante o café, ao descer para levar o lixo. Que dê esperanças de sono profundo no final da tarde.
  Um dia que brilhe sem ilusões, que não seja inesquecível, mas não se permita apagado nos próximos dias; um dia que dure para além dos mil quatrocentos e quarenta minutos.
  Um dia para ser suspirado, em poesia nunca escrita.

  Alguma coisa que ajude a descansar, um travesseiro com fronha rosa, um quarto em uma hospedagem de pedra, uma banheira morna com gotas de lavanda, uma cama que não tenha pressa.
  Algum som que mantenha ouvidos capturados: súplica de bem-te-vi, uivo noturno de cão, sorrisos infantis, chuva no telhado da varanda, no parapeito da janela, o violino do vizinho, o violão do hóspede distante.
  Alguma voz que interrogue sem exigir resposta, que seja honesta e divertida, suave e estimulante; que não concorde sempre, mas que não seja manipuladora. Uma voz de longe que se queira ouvir, sem enfeitiçar, que caiba nos mil silêncios alimentados. Uma voz vinda de fora que respeite as dezenas que saem de dentro; e que as internas saibam dialogar com a de fora. 
  Uma roupa que não aperte, que não tenha etiquetas de poliéster que irritem a pele, que amasse, rasgue, descosture, que seja menos importante do que a nudez. Uma peça da fantasia de carnaval brilhante que  possa ser usada em novembro; numa noite sem festa, só com música e vinho.
  Conforto e lantejoulas entre versos.

  Um lugar que não seja o único refúgio ou tão bonito quanto os cartões-postais, mas que acolha um extravio, uma rota mal calculada, um viajante sem memória para o destino. 
  Um espaço entre dois territórios que não seja fronteira, mas lugar de unidade e interseção; que aceite duas moedas, entenda dois idiomas e conviva com leis, tradições e símbolos que não se desafiem. 
  Uma cozinha quente com rostos familiares, um cachorro velho, um balde com roupa de molho e um pano de prato com o dia da semana bordado. Uma cozinha com xícaras de flores pintadas, um bule esmaltado e um filtro de barro pequeno no canto da pia.
  Um lugar que caiba nos versos de Aninha, a menina da ponte.

  Uma espera que não torture, que convide a sentar numa poltrona macia de uma casa com cortinas transparentes, que mostre o céu estrelado. Um acontecimento aguardado que não chegue pontualmente, não toque a campainha, não bata palmas ou avise da sua vinda com antecedência, por telefone. Uma espera cuidada com chá morno, meias de algodão, manta macia e uma parte da letra de música escrito, com uma sílaba ausente, na parede.
  Uma busca que não seja cega, que não oculte as descobertas periféricas, que não seja inflexível e acima de concessões.
  Uma procura que não se perca completamente, mas não ande somente em linha reta, que aceite ondulações, círculos e as interrupções dos pontilhados; que seja obstinada, mas não tenha febre, não expulse as visitas para ir para cama mais cedo. Uma espera que goste de estar nela, que aproveite a temporada para regar as plantas.
  Uma espera versada, sem limitações de linhas.

  Um amor de outros tempos que não cobre o passado no presente; que não faça barganhas, que não deixe a grama crescer para que ninguém queira deitar no jardim.
  Um amor-promessa que não iluda, não minta, que ofereça a chama de uma vela, um pedaço de chocolate, o segundo tempo de partida do futebol na TV, o lado da cama fora da parede e, nela, um sonho partilhado, feito a partir de recortes.
  Um amor-lembrança que caiba em uma bolsa pequena, mas esteja livre para sair dela a qualquer momento. Um amor-literato que marque as páginas de um romance, mas que não queira que elas também sejam as preferidas do leitor companheiro.
  Um amor que acabe em junho, dia trinta e recomece em julho, dia primeiro. Um amor-fim que também seja amor-começo, se as métricas muito treinadas não matarem a poesia.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 10 de Julho de 2018

Prezada Amanda,

Li este texto umas vezes além do normal, se é que existe normalidade. Da primeira vez pareceu-me um lamento, destes de amor cortês. da segunda vez li saltando parágrafos como saltava poças da chuva da minha infância.

Havia algo ali, eu pensei, que era furtivo, que sequestrava as ideias, as memórias, os sentimentos. Havia algo tanto quanto nas poças mágicas da infância de pés descalços.

Hoje regressei para entender melhor o que não estava vendo na limitação das minhas crenças, claro, além dela não se vê nada. Então desta vez li sem saltar poças - afinal o que há de sujeito oculto neste texto que me intrigou tanto? Psicanalista fosse, destes imaculados, diria que a narradora tem uma angústia profunda, tão profunda quando dolorida, tão dolorida quanto enraizada (fortemente) no seu mais íntimo campo existencial.

Há na protagonista (vou demarca-la no universo feminino, como são todas as suas protagonistas), ao que me parece, um afeto quântico imensurável, um amor de tanta pureza que padece de explicação, uma entrega do eu que pressupõe uma falta de autonomia diante da pessoa amada, e isto, quer dizer, neste lugar místico do desejo onde se encontra, expressa-se impedida de responder diante do outro, cujo querer é uma coisa enigmática para ela.

É de uma leveza passional sensibilizante e ao mesmo tempo tem uma expressão de emergência muito simbólica diante do desejo do outro. Enfim, angustiante e belo texto, como sempre.

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gelada, 11 de julho de 2018

Caro Paulo,
Sabe que tento sempre dialogar com as impressões com as quais me presenteia. Mas desta vez veio tudo, ainda mais, articulado, que nem consigo encontrar arestas para encaixar respostas.
Mas que bom que veio algumas vezes ao texto, assim, sem desistir, acho que é um bom sinal. Obrigada pelas vindas e por essa belíssima análise e me desculpe o trabalho...rs

Abraços