quinta-feira, 26 de julho de 2018

Perdi o meu álbum de fotografias da infância, mas não perdi a infância

  Primeiro, eu perdi minha trança, minha pulseira cigana, que eu mesma troquei por outra e nunca mais encontrei em bolso algum. Perdi meus dentes de leite, o ônibus para a escola, muitas vezes, meu chinelo novo no vestiário do clube e voltei para a casa descalça; chorei por isso também. Perdi muitos guarda-chuvas e só encontrei um, que não era meu, mas me serviu num temporal. Perdi meus dentes sisos, arrancados dois a cada vez, na cadeira de um dentista muito gentil, enquanto a secretária dele assistia a uma novela. Perdi meu livro sobre astrologia e, depois, o interesse por astrologia, porque sou taurina do segundo decanato, parece que pouco crédula.
  Perdi meu tônus muscular e mais colágeno da pálpebra direita do que da esquerda. Me perdi, duas vezes, na cidade do Rio de Janeiro e acho que me encontrei nas duas. Mas eu não perdi meu sinal perto da boca e por isso eu me reconheço em qualquer espelho do mundo.

  Depois, eu perdi um dos meus brincos, do par de pedras azuis; e fiquei com outro guardado, me lembrando da perda, sempre. Perdi algumas crenças, muitas, cada ano quatro ou uma dezena, mas a fé, estranhamente, ficou para me lembrar do que resiste. Perdi trinta e cinco minutos na fila errada, só soube quando cheguei ao guichê. Entrei em outra fila e mais outra; e  descobri, depois de 78 minutos perdidos, que não precisava de fila nenhuma para o meu problema. Os problemas, no fim, não têm senhas. Reclamei com o responsável, mas ninguém me devolveu os minutos perdidos.
  Perdi um agasalho na rodoviária, minha carteira de identidade numa boate, meus últimos dois reais numa aposta de madrugada, mas tudo isso eu recuperei depois. Não eram os mesmos, mas nada disso me fez falta.

  Perdi, também, o rumo, muitas vezes; de casa, do trabalho, da porta do quarto, da última vez, da primeira, da minha vida. Parei no meio da rua e não sabia se direita, se esquerda, se a pé ou chamava um táxi. Mas, mesmo assim, segui, entrei numa galeria e quando saí do outro lado eu inventei uma direção que me coubesse. Perdi a nota e não consegui trocar o secador por outro novo, fiquei com o queimado, o cabelo molhado e a culpa pelo descuido. Mas não chorei, não pedi outro a ninguém e não gripei. Eu perdi a festa de casamento da minha melhor amiga, mas antes perdi o ônibus e fiquei o final de semana na praia, com outras melhores amigas, mas pensando que eu nunca veria minha melhor amiga noiva, chorando no altar de uma igreja. Minha amiga me perdoou, mas eu nunca vi nenhuma foto da sua promessa.
  Eu perdi muitas oportunidades de ficar calada, mas muitas mais de falar. Por isso não me calo nunca mais. As palavras jorrarão de mim, desesperadas, libertas por mim mesma, responsáveis, mas febris.

  Eu perdi a cor dos olhos de um amor. Perdi, primeiro, os dias da semana que ele tomava para si, perdi o meu coração para o seu nome, perdi os meus planos nos quais ele não cabia, perdi a minha autonomia, a minha voz, a vontade de voar. Depois, eu tinha um inventário de todas essas perdas e nenhum advogado que defendesse a minha causa. Nunca houve um julgamento e eu remendei o meu próprio coração, ganhei habilidade nas mãos e rasguei o inventário.
  Eu perdi um amigo para o caminho de Santiago de Compostela, ele nunca voltou de lá; mas me mandou postais três anos depois da partida. Eu jurei ir lá, mas perdi o seu endereço em algum carro de mudança. Eu perdi um amor e um amigo, mas não perdi a capacidade de amar nem as memórias de amizade. Se qualquer um dos dois encontrar a  minha porta, eu vou abri-la com saudade.

  Num mesmo dia, eu perdi o medo de avião, de viajar sozinha, de dormir, numa poltrona, ao lado de um desconhecido e de aceitar a comida oferecida por um estranho. Eu descobri coragem, confiança e generosidade, em um só dia, num solo nunca antes pisado.
  Eu perdi o primeiro tempo, a primeira temporada, a primeira sessão, o primeiro ato, o capítulo de abertura, porque cheguei atrasada, mas vi os gols do segundo tempo, entendi o enredo, fui na sessão seguinte, chorei e aplaudi quando as cortinas se fecharam e continuei com a leitura até o último ponto final. Encontrei um meio de começar noutro tempo e, mesmo assim, não lamentar o que eu não pude realizar antes.

  Num dia de setembro, algum objeto quebrou uma parte de mim, não varri porque não encontrei nenhum dos cacos; ficaram soltos, instáveis, mas ainda colados à outra parte de mim. Eu perdi o medo de que caíssem, só muito tempo depois, quando eu descobri que se caíssem eu ainda teria o que me segurasse.
  Eu perdi as minhas chaves de noite, num final de semana e o chaveiro desconfiou da minha história e  da minha propriedade, só acreditou quando dois homens estranhos juraram veracidade. Eu perdi a paciência, a gentileza e só entrei em casa porque eu fiquei calada, mais uma vez e tinha duzentos e treze reais na carteira.
  Eu perdi o primeiro sol da manhã de 2017, porque bebi demais, sorri demais, chorei demais e dormi demais. Mas eu não dormi na última noite de 2017 e assisti ao nascimento do primeiro sol, no primeiro dia deste ano. Eu ajudei no parto de 2018.    

  Eu perdi o álbum de fotografias da minha infância, uma amiga no final da adolescência que dirigiu um fusca até um poste, a casa em que nasci para a especulação imobiliária, as laranjeiras do quintal da minha avó para uma lavanderia, o pássaro amarelo, o gato preto, o cachorro marrom para o efêmero da vida. Perdi a viagem à Disney, porque eu não sabia o que era a Disney, um sapato de amarrar que eu só usei duas vezes e o meu pé cresceu muito mais rápido do que os convites que eu recebia para as festas. Mas eu encontrei lugares onde ninguém chegou nunca e as minhas fotos, as casas, as laranjas doces, o pássaro, o gato, o cão, a Disney, os sapatos e as festas nunca se perderam, de fato.
  Eu me acostumei a perder, mas sempre me encontrei no final da travessia de uma galeria no centro. Eu perco muitas coisas, mas estou, para sempre, encontrando outras.


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