domingo, 29 de julho de 2018

Eu sei o que você fez nos trinta invernos passados

   Há quem lave o carro, a calçada, o cachorro, o cabelo, no sábado pela manhã. Usam água, sabão, xampu e aproveitam o sol e a tranquilidade do trânsito.
  Eu tenho lavado as retinas dos números, das horas amarelas, das resmas de papel em branco que nunca sei como irão usar. Eu tenho libertado dos meus ouvidos a voz enganadora dos noticiários, das pesquisas de intenção de voto, os uivos de medo da matilha que se engana com qualquer sombra.
  Eu tenho demorado na cama, mesmo que esteja sem dormir há séculos. O colchão não me evita, os lençóis abraçam a minha cintura, não me deixando ir e o travesseiro amacia os meus pensamentos-sonhos. Eu não atendo a ninguém, porque também ninguém bate à minha porta aos sábados, quando ainda estou indisponível para o que vem do lado de fora. Eu cuido dos meus sábados como meu pai cuidava dos seus sapatos nos finais de semana; concentrado, sem deixar um pedaço de coro sem brilho.

  Há quem mude os quadros de lugar, quem jogue fora as cartas que mentiram um dia, há quem queime as fotos de uma figura ruim, nas manhãs de sábado. Eu carrego a memória para a beirada da janela e deixo cair os ciscos que não devem ficar lá; as sobras, as rebarbas, tudo aquilo que não tem a importância para ocupar. Eu varro as ameaças, as intranquilidades dos tempos difíceis, espano as indelicadezas das pressas da semana.
  Devagar, eu ajeito a calma que não me foi possível nos outros dias, volto à subida escarpada do ócio aparente e batalha profunda encoberta, mesmo que eu não tenha tanto tempo para a escalada e nem saiba se este é o caminho.
  Eu não adio, mas também não cumpro horários, eu não gosto de conversar, a não ser curtas amenidades, com ninguém aos sábados pela manhã.

  Há quem regue jardins, pequenas hortas, uma avenca na varanda. Há quem feche os registros e lave as caixas d'àgua no sábado pela manhã. Eu desligo os alarmes, os lembretes, os motores. Calço um tênis de corrida e saio sem nem saber se os joelhos podem, aguentam, resistem. Caminho no final da manhã como se não voltasse à casa, me despeço do gato, dos livros, dos rostos nos porta-retratos, dou duas voltas com a chave na fechadura e ligo a música no modo aleatório. Nos sábados pela manhã, não me esforço pelas escolhas.
  Muitas ruas e músicas depois, eu a encontro tranquila, cuidadora do seu sábado matinal como eu. De olhos fechados e cabeça erguida em direção ao calor do sol, numa velhice bonita instalada há mais tempo que a minha, sentada em um muro baixo numa das casas da rua e acompanhando o cão que também toma sol de olhos fechados.

  Há muito eu não sabia dela, nada. Nem pensava se os seus dias ficaram mais vazios ou se foram preenchidos por outra coisa. Nem a vi ir embora, na verdade.
  Eu me acostumei muito à sua voz, jeito de falar sobre coisas que eu não conhecia, sua postura elegante, respondendo perguntas, organizando filas, recebendo aplausos; mas também me acostumei ao seu adeus sem rituais, ao menos, públicos. Ela tão presente em outros invernos da cidade, agora, na mesma rua em que eu, no sábado de ócio e quentura. Mas eu só soube que era pela posição do seu rosto, muito erguido e pela cor dos cabelos.
  Pela primeira vez eu a vejo de moletom, sem echarpes coloridas, sem brincos, sem maquiagem, mas com o cabelo ainda mais vermelho sob o sol. Pela primeira vez eu a vejo à minha altura e nem consigo chamar pelo seu nome para cumprimentá-la. O silêncio não nos separa, Nina Simone canta no meu fone e acho que a música fala para a mulher de cabelos vermelhos.

  Há quem cozinhe batatas para um nhoque, há quem dessalgue um bacalhau ou corte finas fatias de cenouras para o almoço, no sábado pela manhã. Ela respondia aos e-mails, falava ao telefone, organizava os lugares na plateia, convidava e recebia os luminosos artistas. Ela ajeitava a gravata do marido, pedia silêncio para a neta adolescente e aplaudia o filho.
  Os invernos dessa cidade já foram regidos por ela e eu só a reconheço pela posição da cabeça e pela cor do cabelo. Nina fala sobre uma old girl, na música em modo aleatório, e eu não tenho coragem de atravessar a bolha que protege o meu sábado e o da mulher com seu cachorro, para falar-lhe do legado. E o que eu saberia dizer? Que me lembro, que eu fui afetada pelo seu trabalho e que os meus sábados são melhores porque ela me deu algo? Aos sábados pela manhã eu não sei partilhar profundidades.

  Há quem zele pela segurança de algum patrimônio que não é seu, alguém que lave os copos de uma outra cozinha que não é a sua, que alimente um filho que não se parece com o seu, nas manhãs de sábado. Eu penso em tudo o que uma mulher que toma sol pela manhã com o seu cão, ambos na mesma posição, possibilitou ao mundo, melhor, a mim; que é de quem sei. No legado que não sai com ela ao sol, não a ajuda com as sacolas do supermercado, não faz massagem nas plantas dos seus pés, que doem ao final do dia.
  Durante trinta invernos ela brilhou na cidade, assisti, talvez, a metade deles.

  Há quem lave as roupas de cama, o uniforme das crianças, há quem lave as solas e as palmilhas dos sapatos, eu lavo a alma, nas manhãs de sábado.
 A manhã de sábado é o meu único reino possível. Mando eu, obedeço somente a mim. Sou a soberana, a corte, meus dez súditos. Sou, nas manhãs de sábado, a minha escolha democrática que reconhece  deveres e luta por direitos.
  Eu e a mulher do cabelo vermelho na mesma rua, tão donas de nada, expostas ao sol e a poluição dos carros. O seu legado não amacia o seu assento, não leva o cão para passear, não incide os raios solares só para ela. O cabelo vermelho dela, o cachorro cansado que não late, a sua aparência tão ordinária, quanto a minha.  Só a voz da Nina invade o meu idílico sábado. O legado é  uma ilusão.
  Coroada rainha de sábado, eu sei o que você fez nos trinta invernos passados. Eu sei e sou grata por eles. E isto é, por acaso, um legado?
  Os meus sábados são os meus legados para mim e ninguém mais.



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