Agosto não é um mês de festa, mas também não é de penitência. É um começo inesperado. Agosto é um gomo azedo da fruta bonita por fora, mas crescida numa temporada que não é a sua. O gomo encontra a língua, que o estoura e o rosto se contorce desiludido pelo afago que não veio. Agosto é o esperado que nunca chegou.
Seu nome não é um nome próprio qualquer que a professora escreve na lousa verde com o giz branco, as vogais e com o vermelho, as consoantes para ensinar a ler. Seu nome, neste mês, é um barulho de sino ensurdecedor que eu ainda ouço muitos dias depois de ter passado em frente à capela. Seu nome vibra em mim, mesmo que eu nunca mais tenha o pronunciado.
Seu rosto não é uma composição de tecidos, com um maxilar quadrado, ossos demarcados, nariz proeminente e um declive no meio do queixo, numa fresta pouco visível que o meu dedo mínimo sempre encontra. Seu rosto é uma paisagem inesquecível com a qual eu tenho muitos sonhos, como alguém que nunca se esquece da casa onde nasceu. Seu rosto, em agosto, é a minha casa, mesmo que eu nunca tenha morado nela.
Seu segredo, em agosto, não é mistério. É um medo, guardado no bolso interno do paletó, quase ninguém sabe que existe, mas nunca sai de lá, sempre acompanha. Às vezes lava, espera secar e passa o paletó e o medo ainda impregnado no bolso de dentro, como uma etiqueta muito bem costurada. O medo não é lavado pela água quente e o sabão neutro; mais fácil é tirar mancha de molho de tomate, vinho, batom, gota de óleo a expulsar a companhia sempre guardada.
Seu silêncio, no meio do ano, não é uma ausência de resposta ou interrogação. Seu silêncio é uma certeza que não precisa ser anunciada, porque calada já explica. Seu silêncio é seu protesto mais duro e também o mais suave. É estilo e arte. É o único golpe pelo qual eu não me canso de ser atingida, entro na fila todas as vezes, quando necessário, para tê-lo.
Aquela mão não confiável, eu a apertava como se pudesse me segurar, mas não via nunca que, ao contrário, me empurrava. E que era ela que me calava, me sufocava, me prendia enquanto eu achava que era abrigo. A mão me roubou os sorrisos, os sonhos, o último bombom da caixa e eu ainda procuro por ela quando as luzes se apagam; por costume, mas depois me esqueço.
Mas em agosto, a minha mão insegura é a única a encontrar a chave, segurá-la, buscar a fechadura e rodar quantas vezes forem necessárias para guardar ou ir embora. A minha mão vacila, erra, se confunde, mas é a única que pode me tirar da casa ou querer ficar em uma. Ela apaga e acende as luzes, tateia saídas no escuro, destranca grades, abre portas e aponta janela. É a minha mão que me dá a mão, quando eu preciso ir só.
Uma herança, recebida na última semana, não é um merecimento que o morto deixou; é uma esperança, aquilo que ele não usufruiu e quer que eu o faça, é uma carga de expectativa que um dia aprendo a não corresponder, sem dor. Uma genética não é boa ou ruim. É um conjunto de características, com os riscos e as trincheiras que elas possibilitam; não é um destino sem desvios.
Uma herança, seja ela qual for, é um bastão passado adiante e pode sim, terminar na mesma mão, se outras não puderem carregá-lo. Uma herança, em agosto, é um fardo cheio de memórias, algumas molhadas de dor e outras flutuantes, que não se detêm quando abrimos a mala; vaporosas penas que se espalham, não lutam para ficarem juntas. Pedaços desordenados de vida, que não precisam de encaixe.
Só em agosto os mortos são delicados com os seus embrulhos e os destinatários escolhem se abrem ou os deixam no fundo do armário.
Seus olhos não sabem, eles olham e fantasiam um alguém que não existe. Seus olhos não mentem, mas você distorce aquilo, o que de melhor, eles revelam. Sua boca não é sincera como seus olhos são. Seus sonhos roubam as minhas verdades, em agosto, as transformam em espetáculo circense, quando eu só queria tomar um café em frente ao aquário.
Suas percepções idealizadas destroem as minhas frases com as vírgulas em lugares despropositados. Sua procura por perfeição me apaga e desenha um rosto que eu desconheço; tudo isso em agosto.
Agosto nunca foi um mês como os outros. Porque agosto não espera. Agosto não tem mais tempo.
- Antigamente agosto durava tanto.
Disse a moça da recepção. Não me lembro deste tempo e tenho mais idade do que ela.
Agosto é uma metade mal compreendida, largada na história, esperando o calor, as férias, a praia. Agosto é um mês de estar sentado, olhando para a porta. Em agosto, nada começa, só termina como um pedaço de doce entalado na garganta, que desce arranhando e pede sempre um copo de água.
Antigamente durava mais, ela disse. Mas o tempo não é guardado em mês algum, tenho achado.
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