Tenta um verso simples, alguma lembrança, um bilhete para a moça que passa as suas roupas na quinta-feira, uma lista para levar ao supermercado quando for sair, mas tenta alguma comunicação escrita, por favor.
Tenta uma requisição, um relatório desses pragmáticos, uma carta para alguém que você nunca escreveu antes ou alguma resposta para a carta que recebeu há mais de dez anos; mas tenta.
Pode ser uma paródia, uma piada, se o seu humor permitir, tenta quem sabe uma pergunta, dessas sem resposta certa, dessas para passar uma vida tentando responder, pode funcionar, mas não desista de imprimir a sua existência nessa folha sem pauta. Porque eu também preciso da sua frase, ler você sempre, antes do desjejum. Isso o que você escreve nasce com o meu sol todas as manhãs. Tenta por mim, senão, pode ser que eu nunca mais desperte. Tenta trazer você a algum lugar de mim, mesmo que esteja tão difícil, esses dias, voar sem vontade.
Tenta só mais essa colherada, só mais um pouco do caldo ou esse pedaço de carne. Tenta nutrir o corpo, ainda que dentro esteja despedaçada. Tenta, mesmo que engolir seja difícil, só tenta. Tenta tomar mais esse gole de suco, segurar o copo, sentir o cheiro doce ao menos, e levá-lo a boca, se conseguir; tenta só mais um pouco.
Tenta não sucumbir aos jejuns dos mártires, você não precisa ser um deles, você não é um deles. Sua causa não precisa da fome, sua causa precisa ir além das faltas, precisa mais de excessos. Tenta não se afogar num mundo ainda mais insípido. Tenta pimenta, cúrcuma, hortelã, cheiro verde, gengibre, alho-poró; tenta alguma raiz forte, folha ou semente que a faça desejar;, que é o contrário da desistência.
Tenta querer organizar um banquete, um chá das cinco, um piquenique, um lanche no intervalo do trabalho, tenta comer dois tipos de sobremesa ou o bolo com sorvete da confeitaria que eu nunca estive. Tenta a torta com recheio de doce de leite. Tenta não querer ser a cara da fome.
Tenta começar uma carreira de tricô com a linha que a gente comprou no Centro, daquela vez. Tenta algum ponto, mesmo que não chegue ao fim, mas tenta. Tenta desencostar da cama, enxugar as lágrimas e pensar em um cachecol para o inverno que daqui a pouco chega no seu continente. Tenta pensar em se aquecer de novo; tenta sonhar com a neve e a querer revê-la.
Tenta cruzar as duas agulhas com a linha e arrancar os últimos espinhos da sua dor. Tenta olhar para suas mãos habilidosas e se lembrar da coragem que é a de estar aí, quase sozinha. Tenta escutar que, na verdade, nunca está.
Tenta fazer os primeiros pontos sem pensar no tempo em que esteve afastada da sua construção, seu artesanato, sua feitura de si mesma. Tenta gostar de recomeçar, mesmo que não saiba com que linha deve ser.
Tenta mais um passo em direção à porta, à janela e depois, à sala, à cozinha, à varanda do apartamento e ao portão do prédio. Tenta caminhar pela estação de trem, pela praia, pelas ruas do bairro, da cidade, até conseguir atravessar o país de novo. Tenta com o coração, tenta com as memórias, se começar pelos pés for muito duro; mas tenta ir, ganhar espaços.
Tenta andar diferente, quando puder movimentar as pernas. Tenta correr ou dançar, andar mais devagar ou com um rebolado que não tinha; tenta se espalhar de novos jeitos.
Tenta não ter medo de pilotar a moto na autoestrada, de se equilibrar com a bicicleta, nas descidas, ou das longas caminhadas solitárias no final da tarde, aos domingos. Das coisas mais difíceis e mais transformadoras: aprender a cair sozinha, mesmo quando tenha a quem chamar.
Tenta estancar o sangue, coloque um pedaço de tecido limpo em cima, no corte profundo, com a faca nova, lâmina afiada e a sua distração ou terá sido entrega? Não importa, ambas são tão justas. Machucado novo, dor repetida. Não aprende quando fere, não larga a faca, não anda com mais cuidado nem deixa de correr no piso molhado. Coloca gelo.
Tenta um pouco de arnica, se for só hematoma, se tiver corte é só água corrente. Se tiver sorte, vai doer forte e depois é só passagem.
Tenta um pouco de choro, em qualquer lugar, a qualquer hora, na frente de estranhos ou conhecidos; só não represe, não silencie, não censure a dor que precisa desaguar. Tenta se deixar ensopar, o rosto inchado, a cabeça latejando e depois, só seque e junte toda a bagunça, explique à faxineira que o chão já está suficientemente lavado; que é só passar um paninho.
Tenta ouvir mais uma música, a última que eu mando hoje, quase prometo. Tenta não querer matar a poeta que fez aquele justo verso que agora ecoa no seu coração recém desocupado; ouça o poema inteiro várias vezes até ele nascer em outro sentido.
Tenta fazer carinho nos próprios cabelos, tenta libertá-los da dependência de outros dedos quentes. Tenta se abraçar, se consolar de uma perda finita e escutar a voz que vem com a maresia, acalentadora e única senhora das dores que ninguém vê. Tente fazer uma oferenda a ela; se ofereça forte e indestrutível a ela.
Tenta escovar os pelos do cão, ajeitar a escrivaninha, ler só mais um trecho do seu livro, com a página marcada, na cabeceira. Tenta querer acordar todos os outros dias e encerrar esse ruim, que só você viu passar.
Tenta não sentir-se quebrada, mas se ver os cacos, tenta se colar, coloca gelo, band-aid, faz imposição de mãos, sessão com luzes coloridas, um banho morno, mas vive de novo e, quase, inteira pela manhã?
Tenta se curar e ao se curar, vivificar todas as suas irmãs também, tenta.
Tenta amar de novo; não hoje. Pode dormir e acordar bastantes vezes antes, mas me promete que tenta? Tenta começar uma frase, tenta não desistir do texto, tenta não entregar a caneta e se esquecer do papel, mesmo que não saiba nem por onde começar. Tenta.
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