sábado, 18 de agosto de 2018

No submerso em que a casa ainda mora

  Não foi por acidente, depois de um mau cálculo de um homem insone ou cuja régua se distanciou alguns milímetros do traço certo no papel, sem que ele visse;  ninguém contou de um temporal que durasse semanas,  imprevisibilidade intensa da natureza, e que, por isso, pensassem até numa penitência divina. Ou, pensando agora, talvez tenha sido um pouco desordem humana e um pouco divina a providência que inundou muitos passados.
  Sob a água, casas, plantações, praça, posto médico, escola, bancos da praça, muros pintados e com frases de amor escritas com carvão ou pedaço de tijolo alaranjado, a igreja e o cruzeiro ao lado dela. Debaixo d'água, o lugar que alguém nasceu e não pode mais morrer nele, o lugar que algum amado pisou, cujos pés adormecidos nunca puderam voltar. Agora, nem o pó da sola dos sapatos dele terá para se lembrar.

  Não foi com a violência de uma onda, depois de um tremor sacudindo o solo e cortina de água arrastando tudo o que houvesse pela frente; com ou sem raízes, com ou sem vigas de sustentação. Também não foi pela chegada de uma interminável tempestade que o vilarejo desapareceu num dia. Quando Dores - o lugar tinha esse nome - foi inundada, tiveram tempo, bem antes, de construírem quase uma réplica dela do outro lado do rio. Mas com planejamento urbano, materiais menos artesanais e ferramentas mais eficientes, puseram fim às casas de adobe e aos telhados de barro, às portas que não davam para lugar nenhum, a não ser a um modesto jardim, e as janelas pequenas, uma do lado da outra, na mesma parede. O nome era o mesmo, as pessoas também concordaram em se transferirem, mas o que ficou debaixo d'água era bem outra coisa e não sei se alguém ainda lamenta não ter podido segurar sozinho o alagamento planejado. Afogada a antiga Dores, nascia a outra Dores.

  Tiveram tempo, enquanto a construtora levantava as paredes de tijolo e concreto no outro solo, de embalarem  os pratos, um ou outro talvez tenha se quebrado no processo, mas disso ninguém está a salvo; organizaram os talheres, separaram as panelas, enquanto isso foram encaixando tampa e panela certa, porque no dia a dia nem sempre é possível fazer esses casamentos ideais. Descobriram peças nunca usadas, ganhadas no dia do casamento há mais de trinta anos, encontraram dezenas de fotos, algumas com uma data e dedicatória no verso, como usava ser feito, na delicada etiqueta dos regalos passados.
 Levaram fogão e mesa, mas os jantares continuaram lá; ainda continuam. Guardaram isqueiros e cinzeiros, apagaram cigarros, mas as dedos dos fumantes continuaram amarelos, alguns carregaram seus enfizemas pulmonares. Dobraram peças de roupa, puseram em malas, sacos e sacolas; até um vestidinho branco, amarelecido de tempo, encontram no fundo de uma gaveta, mas não há mais bebê para batizar nesse domingo e nem a pia batismal será a mesma para os próximos filhos cristãos.

  Foram salvando galinhas, porcos, patos, marrecos, vacas leiteiras e cavalos. Os cães que nunca tiveram de usar coleira, de repente, foram surpreendidos por um cadarço improvisado no pescoço. Latiram, estranharam, tremeram de angústia os coitados, mas os meninos tinham medo que a ingenuidade dos seus cães os puxassem para água que chegaria. Cada um, a seu modo, foi fazendo seu inventário de bens materiais que precisavam ser transferidos para o outro vilarejo; a maioria não tinha muito, mas era nessa escassez de coisas que se via a importância de cada uma. Uma caneca de tomar água para família inteira, essa não pode ser perdida; uma toalha de mesa bordada para dia de festa, guardada há três gerações, essa ia embrulhada com a cerimônia de uma bandeira em dia cívico; uma bicicleta velha que os irmãos revezavam para ir até à escola; que agora seria alguns quilômetros mais distante. E era caneta, pente, termômetro, ferro de passar roupa, máquina de costura, terços e rosários em caixas de madrepérola, quadros com os retratos de santos, papas ou antepassados; um universo de singeleza entre elementos cuja utilidade era óbvia e outros, em quase nada.

  Não vi um piano de cauda sequer, uma máquina de escrever, um vaso chinês ou tapete persa. Não tiraram das janelas cortinas de musseline, nem passaram pelas ruas as bibliotecas familiares com algumas dezenas de títulos, não vi toca discos, quanto menos os vinis. Mesmo assim, era um esvaziamento profundo e delicado de riquezas; uma mudança solene e cheia de dignidade. Ninguém chorou quando deixou para trás a antiga Dores. Pelo contrário, era uma agitação coletiva pela expectativa do novo e, ao mesmo tempo, pela curiosidade do que seria o antigo, em que ainda pisavam.
- Vai ser só água. Escutei por meses a mesma sentença. Mas daí a saber o que era esse "só água", era uma distância tão ampla e cheia de números quanto a represa que ficaria bem cima do que era aquela vila centenária. Achei bonita a despedida muito otimista e entusiasmada daqueles que só tinham mesmo sua história e bem mais esperança, para encherem os seus baús e caixotes.  

  Foi um alagamento planejado, uma estratégia muito cuidadosa para ampliar o abastecimento de água e energia da outra cidade, a qual os moradores de Dores nem frequentavam com assiduidade.
  Esvaziaram as suas casas, carregaram os seus pertences, misturados aos seus desejos de futuro e apagaram as últimas luzes, para que iluminassem um lugar que nunca seria deles.
  As mãos visionárias abriram lentamente as comportas, semanas depois e tudo o que não pode ser transportado, foi minuciosamente ocupado por água. As casas e os seu portões, as varandas e os seus namoros; os postes e os seus anúncios feitos a mão, os bancos e seus os sonos bêbados; as mercearias e os seus balcões, os fogões à lenha e os seus tachos de doce de leite. Tudo o que era da antiga Dores ficou mergulhado, só a igreja e o cruzeiro ainda podem ser vistos, depois que o nível da represa foi estabilizado.
  Não sei quase nada sobre a nova vila e os novos modos de vida dos seus moradores. Também não sei se há alguma melancolia, uma saudade que doa, algum tipo de lamento pelo que ficou definitivamente debaixo d'água. Mas sempre que penso na antiga Dores tenho o sentimento de que ela ainda existe, de outro modo certamente, mas ainda povoada, repleta de histórias e com acontecimentos outros diários.

  A antiga Dores, embora não tenha mais as missas anunciadas pelas badaladas dos sinos, aulas com as professoras e as crianças barulhentas de uniforme, nem cachorros sem coleiras, vagando o dia todo pelas ruas, velhas com vestidos de flores, comerciantes com o lápis atrás da orelha, nem conversas sob a lua cheia prateada, ainda tem impregnada em cada espaço seu, partilhado com água, as memórias de cada coisa passada; e isto me parece muito.
  Assim com as duas vilas, as dores não passam nem com um esforço muito calculado e esperança de recomeço no outro lado do rio. Mudamos de lugar, outras dores, novas casas, mais amplas, iluminadas e estáveis, mas as outras, muito simples e ternas, continuam lá, para sempre. Com as suas hortas, seus pomares de três árvores, seu portão de madeira bem baixo.
   Quantas infâncias não ficaram debaixo d'água? E amores? E escolhas? E destinos? Mas ainda existem e é só chegar bem perto de onde os mergulhamos que podemos sentir a intensidade das suas existências. Penso se ainda estarei, em algum lugar, fazendo provas sem estudar, esperando pelo final de semana e sonhando com casas de muitas janelas numa mesma parede. No submerso das dores abandonadas, ainda temos uma casa que ninguém mais ocupou.



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