As cadeiras em cima das mesas, o chão molhado, o barulho da panela de pressão e o grito de repreensão, caso alguém tentasse pisar, enquanto passava o pano torcido para tirar a água.
O cheiro de banana madura da cozinha atravessando o corredor e chegando à sala, o latido fraco do cão quase cego, para as motos que passavam em frente à casa. A tevê sempre ligada, afastando-a das vozes da casa que não falavam com ela; tudo era a casa, até o que faltava.
Uns homens com os pratos cheios e as camisas abertas no peito, umas mulheres passando a mão no cabelo dela, enquanto falavam de alguma vizinha, tudo era família.
Os cunhados das irmãs, os primos dos seus sobrinhos, o ex-marido da avó, genros e sogras de alguém que não se lembrava quem. Um primo ocasional a quem era apresentada:
- Leva seu primo para brincar!
Brincavam a tarde inteira e depois nunca mais via o tal primo. Mas era, também, família. Um tio que chegava para almoçar, avós que eram mais do que duas e nunca sabia de onde vinham, mas traziam presentes, às vezes. A que levava bananada, se vestia de marrom e tinha cheiro de antiguidade. Até hoje bananada lembra essa avó.
Finais de semanas inteiros com a casa cheia, barrigas diferentes rodeando a mesa e, depois, sozinha de novo. Tudo era família, até a solidão dela.
Tudo era esforço. Atravessar a sala ou querer ir à lua, quando nem tinha-se ido à cidade vizinha consultar com um médico espiritual por falta de dinheiro. Ir à escola, sentar-se na cadeira por duas horas inteiras e mais duas, era o esforço que durava tantos meses.
Convencer a mãe de ter outro cão em casa e comprar uma antena nova para a tevê que só tinha um canal, enganar a professora porque não tinha feito a lição, ficar mais horas acordada com a luz acesa para ler até de madrugada, enquanto todos dormiam e depois ficar com sono o dia todo; tudo era esforço.
Não ter medo de ficar sozinha em casa, enquanto a mãe ficava até mais tarde no trabalho, não ter medo de morrer, porque queria comer manga, logo depois de ter tomado leite; comia, rezando, mas comia. Tudo era esforço, inclusive saber que precisava se manter viva; a mãe não suportaria não ter filha.
Canudinhos de doce de leite, coca-cola, empada de frango, arroz de forno com ovo cozido em cima; tudo era fome.
Dois dias na casa da avó para ela massagear as suas pernas que doíam pela friagem, uma tarde inteira na biblioteca, ir à loja de perfumes no Centro e experimentar todos, também eram fome.
Contar, para a mãe, sobre o casamento que ela não foi, sobre todos os detalhes dos vestidos da noiva e das damas. Ouvir o programa de rádio com as dez músicas mais pedidas do dia e só gostar de uma, da oitava ou sétima. Balançar na rede quando a colocavam na varanda e ela estava vazia, ficar o máximo de tempo nela para aproveitar a disponibilidade do lugar mais concorrido da casa; não se levantar nem para ir ao banheiro. Tudo era apetite demasiado; inclusive pelo impossível de ser comido.
Tudo era encanto. As mãos tricotando um gorro para uma cabeça média, nem sei como ela sabia analisar os tamanhos de cabeça, se nem fita tinha.
- Qual o tamanho de uma cabeça média? Maior ou menor que a minha? A minha é?
- Sossega, senão erro o ponto.
As crianças bem pequenas cumprimentando estranhos e os estranhos correspondendo alegremente, mais felizes de serem notados do que as próprias crianças bem pequenas.
Chuva com sol, casamento de espanhol. Sol com chuva, casamento de viúva. Não esperavam os finais de semana, os espanhóis e as viúvas, para se casarem. Depois da chuva, arco-íris e as poças d’água; tudo era encanto, até acabar o dia.
Depois de três dias de frio e chuva, um raio de sol que amanhecia, já mudava a cor dos olhos, das cortinas, da casa de dois quartos, banheiro, sala, copa e cozinha. Tudo era verão, se tinha sol.
Lavar os tapetes, a bicicleta, os tênis, dar banho nos dois cães e depois lavar a calçada; o verão durava uma manhã, mas ninguém achava ruim.
Enrolar a mangueira, pendurar os tapetes no varal, cuidar para que os cães não ficassem na sombra; o cego era o mais desassossegado, ficava abraçada a ele para que não temesse o barulho das motos e se escondesse em algum lugar sem o sol. Tudo era verão, quando aparecia um pouco de sol.
- Larga esse cachorro velho e me ajuda a guardar a mangueira.
- Não largo. Ele não é velho. Deixa a mangueira aí que depois eu guardo sozinha.
Tudo era amor. A mãe que não tinha muito tempo para olhar nos olhos dela. O pai que a buscava a cada quinze dias e levava-a ao cinema; duas horas em silêncio e sem luz, na solidão muda e apagada da voz paterna. Dos desenhos que passavam na tela se lembra mais do que do rosto do pai, que um dia não viu mais. Aos desenhos ainda pode assistir. Tudo era amor, inclusive a falta.
- Hoje em dia, ninguém tem tempo.
Falava para si, desculpando o amor que não tinha. O primeiro amor que conheceu foi o perdão. Aprendeu sozinha a amar sozinha, às vezes acontece. Só matava as moscas, porque achava que elas agonizavam dentro do copo com um pouco de café.
2 comentários:
Boa noite, Amanda.
Belíssimo texto.
Sempre que leio suas produções literárias, te imagino falando pessoalmente comigo.
Continue encantando nossas vidas por intermédio da literatura.
Beijos!
Wallace Araújo, rapaz do mundo, de Astolfo Dutra, de Ubá, de Juiz de Fora, de BH...
Boa noite, rapaz do mundo!!!
Que saudade, Wallace...de você, das suas risadas mágicas e histórias maravilhosas. Li este comentário também imaginando a sua voz. Venha nos ver, você faz muita falta.
Obrigada por vir aqui e matar um pouquinho da minha saudade.
Beijos
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