segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Ainda sei o nome do bairro onde cresceu

   Ainda que eu não nunca mais fale o seu nome, ainda que ninguém mais me pergunte sobre você e que  meus novos amigos nunca saibam que você existiu, eu ainda evito cortar o cabelo bem curto, porque me lembro que você gostava assim. Evito, no espelho, alguém que você conheceu e de quem, talvez, tenha gostado, muito.
  Mesmo que eu não saiba sobre o que você pensa da conjuntura atual do país, no qual você nem vive mais, às vezes tento adivinhar algum pensamento seu sobre o estado das coisas. Por costume, curiosidade ou invenção de partilha inútil.    
  Ainda que você nunca comprasse o jornal da cidade e que ele nem chegue até você agora, falei uma frase sua numa entrevista e esperei que você reivindicasse autoria. Nada. Nem sei se você ainda pensa assim ou até se eu penso, mas usei; como a um chapéu, echarpe, um broche antigo que não combina com o restante da roupa.

  E sobre você não sei mais nada. O quão grisalhos estão os seus cabelos, se tem ido ao médico uma vez ao ano, se a hipertensão familiar também o encontrou, não sei se ainda sabe alguma coisa sobre mim que me surpreenderia; meu segundo nome, o número dos meus sapatos ou o meu pesadelo mais frequente.
  Não sei mais seu peso na balança, no elevador, sobre o mundo ou sobre mim, mas como dobrava suas camisas ainda sei, acho que sei. Não sei se aprendeu a separar o lixo e a não usar tantas folhas de papel toalha. Não sei se fecha a torneira, enquanto ensaboa a louça, ou se alguma mão a fecha e você sorri de volta. De você, talvez, eu saiba o que nem é mais seu, o que o deixou, o que se distanciou entre uma viagem e outra.
  Não sei se teve filhos, quais os seus nomes, mas ainda vejo homens com bebês no parque e acho que você seria um pai que levaria os filhos ao parque. Não sei se ainda brinca com os bebês de desconhecidos nas filas, mas se estou numa fila e alguém segura um bebê, penso logo em você, de novo. Sem saudade, sem mágoas, sem remorsos, só penso, sem pensar como me pousou a lembrança. 

  Ainda que eu não saiba sobre os lugares que visitou nos últimos anos, os aeroportos, as estradas, os ônibus, os aviões, os catamarãs e as barcas  que o levaram para o outro lado; ainda há lugares em que eu não sei estar sem saber que você também esteve um dia. É claro que eu não falo, não escrevo a ninguém sobre isto, mas eu me lembro dessa cartografia que ninguém pode ver.
  Eu não sei se chegou a atravessar o tal deserto, se tem viajado como gostaria, se a asma o permitiu alcançar algum cume importante, mas às vezes acho que o vi em alguma matéria sobre turismo na TV e depois acho que não, de novo.
  Eu não me lembro se chovia no último dia, mas a chuva sempre me traz esse dia. No vento, nas roupas que eu esqueço no varal, mas é só uma melancolia fina que acaba, às vezes, antes da chuva.

  Não sei os cobertores, os corpos, as chamas que o aqueceram nos últimos invernos, mas ainda me lembro que as suas mãos eram sempre mais quentes do que as minhas e fazíamos a piada das mãos quentes e coração frio; seu coração, agora, é gelado ou quente? E as suas mãos, onde estão?
  De você eu sei de alguns livros, datas, músicas, pessoas e palavras repetidas, mas não sei absolutamente nada que seja novo. Quem lê, o que ouve, os dias, quantas sílabas e frontes você tem decorado.
  Sobre você eu não sei nada: placa de carro, multas de trânsito, conversas no bar, na cozinha, à porta de que casa?

  Mesmo que eu não veja o topo da sua cabeça no sofá, quando eu entro na sala agora, ainda penso sobre o quão arejada ela ainda deve ser. Os pintores, as notas, as ruas, os filósofos, as medidas, os nomes dos furacões, as capitais, as articulações entre os partidos e as siglas decifradas, eu não sei sobre o que você ainda sabe ou sobre o que já sabe.
  De você eu só tenho uma imagem antiga, a mesma que eu vejo na TV, nas chuvas, nas filas, nos parques, no reflexo do espelho quando eu resolvo não cortar mais o cabelo. Não sei se mais magro, gordo, onde se concentram os sulcos na pele do seu rosto. O seu nome eu não pesquiso, não pergunto e nem falo mais, mas eu sei ainda o som que ele faz, quando quase sai em um suspiro durante as tardes silenciosas do domingo.

  De você só sei sobre os livros de fotografia comprados no sebo, as mesmas notas no violão com algumas cordas arrebentadas, as maçãs do rosto coradas de raiva quando seu time perdia. Não sei sobre desejos, gostos, dia anterior ou seguinte, não sei sobre sua agenda, rotina, os postais e para quem os manda, quantos moleskines na gaveta da sua mesa.
  Mas ainda que eu não saiba o horário do seu despertador, eu sei como você acorda, se levanta ou como sempre se atrasa. Sei do sotaque, da origem do seu sobrenome e da cicatriz no seu ombro direito; de novos traumas eu não saberei.

  Embora não saiba nada sobre você nesta vida outra, que eu desconheço, todas as noites o nome bonito do bairro onde você cresceu me faz virar na cama. O nome do seu bairro é um desassossego noturno que eu não sei controlar.
  Escrevo textos curtos para que você me encontre e que ao me encontrar não conte a ninguém, mas saiba que eu ainda sonho com o nome do bairro em que você cresceu. No fim, as despedidas nunca levam tudo, deixam sempre um rastro de coisa nenhuma passível de explicação. O que faço com o nome que você deixou? Perco o sono ou só deixo o coração me lembrar que você esteve aqui algum dia?



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