domingo, 14 de outubro de 2018

O medo é um caco de vidro cortante e invisível, antes do sangue

   O ismo invade a nossa calma, se cobre com a nossa bandeira, ocupa os nossos palcos, púlpitos e praças públicas; grita disparates e espalha inverdades. Deturpa os discursos, se traveste dos deuses prediletos para pregar a cólera e atacar os nossos afetos, as alegrias mais delicadas e os sonhos que nos embalam. O ismo detesta os sonhadores.
   O ismo  contamina relações, aflora ódios, rejeições, ignorâncias remotas e, por isso, arrebata multidões. Ele coopta ideias, contamina almas e quer destruir absolutamente tudo. Quer cobrir de lama os quintais, os jardins, os parques, as lonas coloridas dos circos pobres, as salas de aula, com letras em giz no quadro verde, dos que querem muito aprender a ler, mas nunca tiveram um livro. O ismo tem bibliotecas, mas não conhece; o ismo acende fogueiras para queimar revoluções, mas só o papel é inflamável; as ideias resistem. 
  O ismo é pai e filho do medo, se alimenta e é alimentado por ele.

   O medo é essa incerteza que questiona ininterruptamente sobre o que já sabe. Nos faz explicar só para nos distrair do caminho, para absorver, para sugar as nossas forças e minar nossa disposição para a luta. O medo não quer entender nada, quer roubar paciência, sequestrar nossas delicadezas e sufocar liberdades.
  O medo é esse pai autoritário e abjeto, e, também, é o filho irresponsável e chantagista. O ismo é um despótico e nepotista, emprega a família inteira na causa destruidora. O pai e o filho são a linha de frente; o medo chega antes e vai embora por último, nas batalhas. O medo inventa inimigos, cores a serem combatidas, é um alucinado e bem menos doce Quixote, que empunha sua espada para dragões que nunca existiram.

  A roupa do medo é pesada demais, mas não protege. Cobre a pele, mas deixa os ossos, músculos e artérias mais vulneráveis do que a nudez. A roupa do medo é demasiado grande e justíssima, aperta
as articulações e impede os movimentos. Não protege do frio, das balas de prata e de borracha, dos olhos de cobiça dos brutos; também não poupa do calor do sol, das altas chamas e da raiva. A roupa do medo é um acessório dispensável, de uso obrigatório para o ismo.
  O medo calça coturnos de couro, prontos para o chute, para a rasteira, para esmagar planos, tijolos, memórias, dignidades e flores. O medo não usa os pretos coturnos somente para caminhar, o medo quer vermelha a sola do seu calçado.

  O medo é um pedaço de vidro, um caco não recolhido que nos finca o pé, numa rápida passagem pela cozinha, e faz sangrar. Suja  os panos, a toalha de papel, os tapetes, o piso, o chinelo. É um pedaço que entranha na pele e transpassa vasos sanguíneos minúsculos.
  O medo é um caco de vidro cortante e invisível, antes do sangue. Inofensivo e banal, antes do corte; mas de imprevisível dano, depois de perdê-lo entre as dermes.
  A prevenção do medo calça os chinelos nos pés em qualquer tempo, não os deixa livres e frescos ou desbravadores e sensíveis aos modos e mundos. Em atenção ao medo, evita-se andar, não podendo voar, paralisa, imobiliza corpos e fecha janelas.

  O rosto do medo é indecifrável, parece triste, quando sorri por dentro, parece cheio de felicidade, quando é só ressentimento. O rosto do medo é o reflexo de quem ele busca destruir, olhamos para ele e nos vemos; tentamos desviar dele e nos perdemos. As expressões do medo são sutis, no início, e perturbadoras, logo depois; frequentam os pesadelos e perturbam os descansos e os amores nas camas.
  O rosto do medo se instala nos ônibus, nos cafés, nas filas dos bancos ou da padaria; entramos no elevador, vamos à igreja, saímos do cinema e o rosto está à espreita, fingindo distração. O rosto do medo é tão grave e sisudo quanto o do ismo. 

  O medo é um carro velho poeirento, sem uso, estacionado numa garagem, onde poderia colocar-se cadeiras para que os donos sentassem no final da tarde e falassem sobre noite, chuva, novela, dores nas costas, política, sonhos, afetos. Discutissem se margarina ou manteiga, se quarto escuro ou claro para dormir, se frio ou calor, se sorvete ou mouse, se em cima ou embaixo. Ou só que ficassem tranquilos, olhando um para o outro em um silêncio confortável e terno. Mas o carro velho não permite esses encontros.
  O medo afasta as preciosidades cotidianas, impõe rotinas cinzas e silencia as amorosidades imprevistas. O medo não toma café às cinco da tarde, distraído, olhando para a própria rua e sorrindo sozinho.  

  A voz do medo é  sinfonia ensurdecedora de uma nota. Sufoca as outras vozes, quer afastar a da liberdade, a do gozo, a da diversidade. O medo quer silenciar todas as outras notas. O medo não gosta de batuques, de improvisos, de contribuições populares, só conhece partituras muito antigas e coloniais.
  O medo mente, se afasta e promete ir embora, mas volta e fica em vigília, esperando alguma distração para o momento do ataque.
  Mas o ismo, seu pai e seu filho não podem com as ideias nem os sonhadores. O medo não suporta a coragem; de um ou de muitos, o medo tem medo de quem enfrenta o medo.


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