quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O que eu quero dizer é que ir para outro país não me consola

  O que eu quero dizer e ainda não disse é que não há de ser nada no seu envelope branco, que se por acaso for, não será nada de grave e que saberemos como carregá-lo, porque eu estou na ponta oposta do seu envelope. Cheguei até ele por cada música, poema, confissão, insegurança, copo, prato, cama, mala, chuveiro, mesa, toalha, caneca, avental, poltrona de cinema, consolo, rímel, beliscão, pente, dor, incompreensão e casaco partilhado.
  O que eu quero dizer a você é que o seu envelope pesa tanto nas suas mãos quanto no meu sono, dia e coração. E que eu fiquei na cama hoje até mais tarde, deixando o sol entrar pela cortina semiaberta e que a cada parte do meu corpo que ele iluminava eu pensava no seu inteiro curado; sentiu o calor daí? Eu queria que sentisse, tanto quanto o meu ombro ao lado do seu na sala de espera. O que eu quero dizer é que também tenho a vida em suspensão, desde o envelope.

  O que eu quero explicar é que é simples, embora pareça complicado e que a Quadrilha de Drummond, mesmo que triste, é de uma humanidade que se comunica com a minha. Se João e Teresa se amassem, quando chegariam as outras personagens? Até o J. Pinto Fernandes me comove.
  O que eu quero que você entenda, mas que eu nunca consigo explicar, é que isto de amar nos leva mesmo a um outro lugar, mas o de ser amada nem sempre. Porque limita, nos isola dos outros mundos, nos cerca de projeções dolorosíssimas, que só usando o superlativo para tentarmos comunicar.
  O que eu quero que você alcance é que se doer, já no início, não é certo com o próprio coração nem com os dos outros. E que a viagem é longa demais para bagagens muito pesadas; sejamos, então, gentis e nos revezemos com a mala um do outro, que isto já um amor.

  O que eu quero mesmo que você entenda é que eu sofro profundamente, que vivo sangrando, mas nunca sujo o tapete da sala, não perturbo os comensais durante o jantar e que a minha dor, embora não seja estridente, sai a passeio sempre que lhe apetece, há uma liberdade sereníssima entre nós. Ninguém submete a ninguém.
 O que eu gostaria que chegasse até você é que a minha alegria é tão antiga, quanto é nova; tão extrema, quanto é suave; tão lilás quanto rubra e que as estações não a envelhecem. Minha alegria é  pueril e é bem simples, com vestidinho rasgado nas bainhas de tanto pular córregos.
  O que eu quero que você descubra é que sangro todos os meses e me curo; que esfolo os joelhos e continuo correndo, que danço quando estou triste e, às vezes, me encolho de tanta felicidade.

  O que eu quero dizer é que estou de asas abertas, embora pareça resignada e soturna, agora. E que de tudo isto não sobrará ressentimento, entende? Nem vontade de vingança, arrependimento, culpas apontadas. Porque eu quero o entendimento, não o único, mas o possível. Desvendar o que justifique a cegueira, os gritos, os rostos de raiva e os gestos armados.
  O que eu quero é ser capaz de comunicar que voamos todos, mesmo quando as asas estão feridas e as consciências perdidas. E que há sempre tempo de reformular rotas, de errar e recomeçar uma centena de vezes, de outros jeitos, mas não para todas as pessoas sempre. E com isso há de se ter cuidado: alguns erros apagam vidas.
  O que eu quero dizer é que ir para outro país não me consola, tenho, além das asas, raízes profundas de esperança e memória. Não sei quanto cada viagem dura, mas não me canso de esperar pelos degredados.
   O que eu quero dizer é que eu vejo todas as suas ligações e não atendo porque não quero, mesmo. Não é culpa da operadora, do aparelho, da minha desatenção remota. Eu sei que já não sou capaz de ser ouvida por você e falar assim não me agrada mais. Você escuta o som, as palavras, mas nunca me ouve.
  Eu quero dizer que eu poderia sim amá-lo e que, mesmo assim, você fosse alguém terrivelmente insatisfeito; e isso me mataria. Porque secaria todas as minhas reservas e, cansada, eu não saberia fazer mais chover em mim. Por isso, inundo-me, mas não deixo que mergulhe profundamente nas minhas imensidões molhadas.
 
  O que eu quero explicar e não sei como, é que sim, o  amor tem tantas nuances, não é uma janela aberta para um plano único. Mas estar na janela a um mesmo tempo é que é o inalcançável mistério. Às vezes chegamos cedo demais, outras vezes demoramos um pouco ou muito e a janela não nos conta se tivemos quem nos esperasse ou estivesse em atraso. Partimos sem nunca saber.
  O que eu quero dizer é que a janela não se fecha se alguém não chega e que evitá-la não nos poupará dos desencontros. O que eu quero dizer é isto: o lado oposto ao simples, neste caso,  não é o complicado; mas o desencontrado. E que o simples não é fácil, mas é o melhor para carregar durante a viagem.

O que eu quero dizer é que não sei falar como escrevo e o que escrevo também não ajuda a explicar nada. Mas é uma janela, entende? Que alguém chegue ou não, ela sempre estará aberta. "João amava Tereza que amava Raimundo que Amava Maria".






2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas ainda que tardia, 25 deste tenso outubro de 2018

Prezada maestra das palavras
Profª Amanda Machado

Escandir é fácil, como disse uma vez lá no passado uma graciosa professora da língua pátria (o difícil é o que se identifica com a língua pátria - A língua é minha pátria E eu não tenho pátria, tenho mátria E quero frátria (Caetano Veloso propondo, impondo, sonhando em assumirmos uma linguagem fraternal, acima da mãe da gentil, a mátria da pátria amada pelo ódio, desigualdade, racismo, violência, etc etc etc ...).

Divaguei na escansão ao navegar na tonicidade das suas palavras. Duras, provocativas, reforçando o dito e o não dito, mas predito. Sim, há predição, quase uma bruxaria sem sê-la. Você encerra sem encerrar magistralmente "O que eu quero dizer é que não sei falar como escrevo e o que escrevo também não ajuda a explicar nada. Mas é uma janela, entende? Que alguém chegue ou não, ela sempre estará aberta."

Sim, ouso dizer que dentro da minha limitação, eu entendo, tal como quando entendi que era eu o Trem de Ferro do Manuel Bandeira
Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente ...

Para beber da sabedoria das palavras que jorram do seu saber, da sua inteligência emocional, desta piração toda do hemisfério cerebral do lado direito é preciso mergulhar no contexto, na alma que propõe essa língua frátria.

Afinal, ora, direis, ouvir estrelas ... com qual finalidade a fala, que é cognitiva, racional e conservadora e mora do lado esquerdo da cabeça, vai decifrar, entender e traduzir o que você escreve, que sai da sua alma? Nunca, que os Arquétipos de Jung digam amém!

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais (Libertas quae sera tamem - será que eles sabem o que significa a expressão?)25 de outubro, de 2018

Querido Paulo,
a nossa língua frátria parece hoje, oportunamente, um sonho a ser combatido...que triste fase a nossa(que não podemos negar, já sabíamos quando começou a ser projetada)!
Estamos em um país do medo, alguns temem a perda dos privilégios (os mais agressivos!), outros têm medo de perder a vida e há os que temem o medo, mas nem sabem que perderão algo também. "É melhor fazer uma canção"...se é o que podemos agora.

Enquanto você escrevia esta sua luminosa carta, eu transitava por um mágico reino e lia sobre Pauli, Jung e sincronicidade...se há uma correspondência significativa de coincidência aí, também, eu não sei...mas que texto interessante! Enfim, obrigada por lá e pela visita tão terna aqui. Sigamos atentos e fortes!

Abraços,
Amanda