sábado, 10 de novembro de 2018

Como guardar as paredes de um apartamento

   O caminhão para em frente ao prédio, é sábado e eu preciso desocupar tudo antes do meio-dia; combinei com o síndico. Vou economizar tempo, porque o outro apartamento é mais perto do trabalho, vou poupar com um aluguel mais barato e também com os trabalhos domésticos, porque terei menos duas janelas, menos um quarto e uma varanda para limpar. Só esses já seriam motivos para eu estar certa da mudança. Mas há outros, especialmente um: eu preciso escapar da saudade instalada em cada parede do apartamento.
  Não há quadro, cortina, cor de tinta, incenso, mudança de lugar de cada móvel que distraia o que aqui já morou e, de certo modo, ainda mora.
Varri o chão duzentas vezes, gastei um rio de água com cloro, descobri teias de aranha, uma pequena comunidade de formigas atrás do sofá, afoguei papéis com outra letra em um das muitas faxinas. Vendi alguns móveis, troquei, comprei outros que vinham com lembranças de desconhecidos e desfiz das minhas, também, com incautos anônimos que pagavam preços simbólicos por coisas que me pareciam demasiado caras, agora.
  Vou me mudar, porque todo dia pela manhã a xícara única na mesa, o ovo solitário na frigideira e a cadeira vazia, que eu inventei de encostar na parede e espremer a mesa sobre ela, denunciam um projeto definitivamente arruinado. Ou é saudade ou é mágoa; talvez as duas juntas embalaram os copos, os pratos, as roupas e os souvenirs de lugares que eu nunca visitei.

   O motorista do caminhão traz um ajudante, enquanto eu olho para os cantos esvaziados de anos felizes e também melancólicos, eles levam tudo: cama, sofá, a máquina de escrever do meu pai, a de costura da minha mãe, uma máquina de pão que comprei e não achei a caixa para colocar de volta; por isso vai enrolada em um jornal e um saco de flanela, de sapatos, eu acho.
- Não achei que fosse tão rápido.
  Eu falo, mas eles não me ouvem, a voz sai pequena e meio agarrada na garganta. Eu não acredito que vou chorar agora. O mês inteiro descobrindo memórias, me despedindo, sem testemunhas, e nenhuma lágrima molhou o tapete e agora, logo agora, o nó na garganta e a voz embargada até para pedir ao vizinho, que segure o elevador.
  Não aguentei, chorei no elevador cheio, na rua enquanto passavam outros carros e muitas pessoas,  chorei na frente dos dois homens da mudança e, depois, com o dono do apartamento; o único que me ofereceu um lenço de tecido, tirado rapidamente do bolso e mais um desconto no aluguel.

   Queria pedir ao senhorio que não alugasse o apartamento a quem não tivesse olhos para reconhecê-lo como o melhor lugar da cidade. Fiz tantos planos na janela da sua cozinha, enquanto lavava a louça. Dancei tantas vezes no piso de madeira da sala, escorreguei de meias pelo corredor, derrubei acetona enquanto fazia unhas aos sábados pela manhã, vinho à noite, goles de água a qualquer dia e hora e deixei escorrer muitos sonhos, que se incrustaram entre as fendas do taco antigo, que ele insistia em trocar por algum piso mais prático e eu me opunha sempre.
  Queria vender livros, mas nunca soube a quem. Por isso, o trabalho longe e o dinheiro que nunca é o suficiente. Queria amar, mas não entendi a língua, nunca chegava a tempo e, por isso, a partida e o ressentimento pelo naufrágio. Queria pagar o aluguel até o final dos meus dias e não sentir a dor de ver os ladrilhos preto e brancos, da cozinha, serem tocados por outros pés.  - É preciso desapego - alguma entidade sopra ao meu ouvido. - Também acho, concordo - eu respondo ao sopro. Mas não acredito muito em mim.

  Enquanto enxugo as lágrimas com o lenço do locador e me lembro dos lenços de pano do meu pai, eu encorajo a voz desentalar-se da minha garganta:
-  Não deixe quem pintem o corredor de outra cor, o lilás fica tão bonito. Testei outras, essa é a ideal para a luminosidade ali. Não deixe que tirem os tacos de madeira, que substituam a porta de vidro da entrada, as grades da varanda, nem que troquem o piso da cozinha e a louça rosa do banheiro. Não deixe que não gostem do apartamento. O homem me olha com gentileza e  compaixão:
- Vai ficar do jeito que você deixou, para quando puder voltar.
  Eu disse que só iria embora porque não podia mais pagar o valor do aluguel e ele disse que não mudaria nada; mentimos os dois.
   Não foram os sonhos desfeitos, a cômoda que perdeu um dos pés antes de ser colocada  no caminhão, os pratos que eu embalei sem nunca ter usado ou o amor que eu não soube ou não me soube; chorei porque eu amei o apartamento e ele a mim, pensei agora.

  Quando o sino da igreja tocava eu e ele acordávamos  no domingo e continuávamos silenciosos, ouvindo alguns hinos, eu me lembrando dos ritos e também da minha mãe e avó e ele não contando a ninguém sobre as minhas vulnerabilidades.
- Não. Nunca. Nenhum atrito, nem quando a infiltração da parede do banheiro começou, nem quando os azulejos da cozinha rebentaram-se numa semana, nem quando eu fiquei sozinha limpando, arrumando, cantando, chorando, bebendo, falando e sendo forte e fraca.
  Fico parecendo materialista quando falo. Mas amei um apartamento e se pareço louca quando penso isso, é porque senti mesmo reciprocidade, resposta para cada pergunta ou outra pergunta, e, então, fazíamos um diálogo de interrogações; se eu gritava ele ecoava os meus gritos, se eu emudecia ele me acolhia com uma mãe, uma amiga, um pai ou um amor de colo largo.

  Os livros foram os últimos a serem carregados. Quando saíram, eu achei que o apartamento se sentiu verdadeiramente magoado.  Fomos eu, os livros e o apartamento, uma tríade inseparável de memórias, imaginação e resistência calma no mundo em ruínas.
  Agora, éramos somente caixas de papelão, choro afagado em um lenço de um intruso capitalista e cômodos ridiculamente esvaziados.
  Antes das onze, tudo o que eu tinha ocupava dois terços de um caminhão pequeno, eu segurava uma bolsa vermelha, tirava dela um molho de chaves e me lembrava de retirar meu chaveiro, entreguei tudo ao senhorio e nem fechar a porta pela última vez eu pude. E as lembranças iriam ficar mesmo no apartamento ou encontraram espaço no caminhão que eu não pude encher?
  Subi no caminhão, me sentei ao lado do motorista e resolvi procurar o celular para uma última foto, mas o motorista arrancou e foi melhor mesmo eu não registrar a despedida.

  Agora está mudo o apartamento, é só mais um na cidade - pensarão os que passarem e lerem a placa de aluga-se - eu sempre saberei que não é.
  Vou economizar tempo, dinheiro, vassouras e panos molhados; no fim, é isto: poupar para viver. Mas eu queria gastar. Eu sempre gastei tudo; só o apartamento ficava, no fim do dia.
- O senhor pare aqui por favor.
  Eu gritei ao motorista, agora, assustado.
- Vou voltar e tirar uma dúvida com o senhorio. Mas antes: se tiverem que descer a mudança no apartamento do qual recolheram o preço é o mesmo?





4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, tarde fria e chuvosa da primavera de 2018

Amanda

Mudar é uma arte. Os judeus tiveram que atravessar o Mar Vermelho e 40 anos depois atravessaram o Rio Jordâo para chegar em jericó, ainda com medo, apesar da terra estar prometida a eles.

O medo de mudar é atávico e o ato de mudar é arte.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, tarde quase ensolarada do domingo, de um novembro chuvoso

Querido Paulo,

Há isto mesmo, uma marca cultural que se insere também no ato de mudar... para alguns povos a mudança é o movimento da vida que energiza, para outros é mais desgastante e doloroso. Mas acho que para todos é necessário...sim, é também uma arte.

Abraços,
ótima semana

Unknown disse...

Coisa mais linda... E e incrível sua capacidade de combinar perfeitamente suas palavras com a música certa! 💙

Amanda Machado disse...

Muito beijos! <3 <3