segunda-feira, 12 de novembro de 2018

De torcer as roupas pela manhã temos vivido

  Há dez dias a insônia voltou. Derrubou minha xícara com chá, acendeu as luzes, endureceu o
colchão, puxou o lençol e o travesseiro. Deitou no tapete ao pé da minha cama e fincou sua estadia sem convite; até o gato ela irritou com a sua presença imposta.
  Há dez dias, as noites são muito longas e os dias curtos e sonolentos demais.
  Mas no décimo primeiro dia choveu, o barulho da água caindo, o ar fresco e a rua vazia convidaram o sono. Que esquentou meu chá, apagou a luz, afofou o colchão e me cobriu com o lençol macio.
  A água dissolveu, ao menos por uma noite, o envelope  e a minha angústia, o medo de ter medo e a minha limitação, uma vulnerabilidade com nome científico, receita com grafia ininteligível. A vida, de novo, numa corrente que não controlo. Olho para o céu escuro e não sei a que horas e o quanto de água cairá.

  Dormi o sono dos desmemoriados, nem promessa nem dívida, nem medo nem ansiedade, nem arrependimento nem resolução, nem culpa nem orgulho, nem acidente nem planos. A preciosa pausa noturna dos que flutuam em mar calmo, sem esperança ou pressa por um continente. O gato voltou ao quarto, subiu na cama, quando viu o tapete vazio e também descansou em paz. Partilhamos o alívio e a almofada maior; meus pés e o corpo felino inteiro. 

  Pela manhã, fui caminhar alegre pelo asfalto lavado - o melhor cheiro do pós-sono - , renascida, energizada e grata pela partida da visita inoportuna que desocupou o meu tapete, nos primeiros minutos de chuva.
  Ainda me lembrava do envelope, dos nomes científicos e das prescrições farmacológicas, mas não senti medo, insegurança ou mágoa. A minha persistente insônia foi derrotada por algumas poucas horas de chuva; qualquer vida está sujeita a sutis imprevisibilidades como esta.
  Muitos carros na avenida, poucos pedestres ainda e só uma imagem me detém agora: um homem do outro lado da rua, no pátio do prédio que está em reforma, torcendo suas roupas e estendendo-as numa mureta. Um guarda-roupa inteiro: duas calças e cinco blusas, um par de meia e nenhuma roupa íntima. Sua moradia está no chão, a lona não suportou a pressão da água e ele caminha sobre o seu teto azul agora.
  Ele não dormiu.
  Na noite em que a insônia partiu do meu tapete e eu e o gato pudemos descansar, o homem tinha o seu teto jogado ao chão e todos os seus bens encharcados pela minha paz noturna.

  Agora, eu caminho descansada enquanto ele torce suas roupas, silencioso e resignado, como eu fui por uma dezena de dias, abrindo e fechando o envelope do criado-mudo. Por que as roupas que ele torce tão publicamente ninguém vê? Por que o meu envelope, mesmo em limites domésticos, causa mais comoção?
  Queria atravessar a rua e pedir desculpas pelo meu sono tão pequeno-burguês que se alimenta do barulho das tempestades. - Quanto mais vento e mais água melhor! Que chova a noite inteira para eu me sentir embalada! - Queria atravessar a rua e ajudar a torcer suas peças de roupa e quem sabe tentar secar o seu cabelo.
  Quantos quartos vazios e um homem na rua, completamente vulnerável aos fenômenos naturais?

  De não perguntarmos, mas recebermos respostas estúpidas, mesmo assim, temos dormido. De não gostarmos da companhia à mesa, mesmo assim, temos jantado. De sermos julgados por não apontarmos, de sermos condenados por nos posicionarmos, ainda assim,continuamos a discursar, sem nem sabermos a que plateia.
  Por lisos diálogos temos escorregado, por afagos interessados temos cedido; as peles mais marcadas, as mãos mais feridas e as dores menos suavizadas temos ignorado.
  As desculpas deveriam vir em comboios; mas é possível que venha envergonhada, pequena e triste numa bicicleta de segunda mão. Eu não atravessei a rua, só acompanhei cada peça de roupa, encharcada, ser estendida.

  Hoje choveu de novo. A insônia voltou, mas não ocupou meu tapete. Sentadas na beirada da cama, ouvindo a chuva forte lá fora, dividimos os cigarros e as horas acordadas.
- Como tem sobrevivido o homem quando um dilúvio surpreende o seu descanso? Perguntei à visita.
- Amanhã ele torcerá suas roupas.
  Me acostumo  ao que acho que mereço. Acostumamos muito mais às ausências, porque a falta parece nos caber melhor do que a prosperidade. Não ocupa, não confunde, não exige esforços de manutenção.
 Nos acostumamos a não ter.

  Nas manhãs depois da chuva, ele torce todas as suas roupas e estende sob um sol que é tão imenso, que aquece as suas imprevisíveis fatalidades e ilumina o meu sonho sem sono, no envelope em cima do criado-mudo. Depois da tempestade, olhar para o céu e esperar pelo sol.
  De torcer as roupas não podemos esquecer nunca, mesmo que a previsão para o dia seguinte avise sobre a chuva.
  Ainda que desamparados de aprendizado de termos tudo, é preciso sair da cama pela manhã, levar o envelope até o consultório médico, ouvir o que pode ser dito e torcer as roupas. De torcer não devemos nos salvar nunca. Porque é o que podemos fazer depois de uma tempestade que derruba o teto.



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