domingo, 16 de dezembro de 2018

E inventar um amor já não é possível

  Inventar uma casa não é difícil. Sob um teto qualquer, numa cidade cujo nome aprendemos a escrever para o cabeçalho das cartas, colocamos lembranças, histórias que ouvimos, lembramos, escrevemos ou que alguém nos contou um dia. Inventamos cômodos, sentidos e sentimentos para cada um deles: no banheiro, o chuveiro morno para o esquecimento; na cozinha, a pia de xícaras sujas e lágrimas pingando na espuma; a sala dos livros, das visitas e da saudade; o quarto para o amor e o vazio dele.
  Inventar um lar é caber acúmulos, versos escritos nunca publicados, correspondências fechadas cujo destinatário se mudou há muito e esquecemos de devolver ao correio, medos na madrugada e pequenas coragens no desjejum.
  Inventar um lugar para voltar é fácil. Chamamos alguns amigos, afetos antigos e recentes, que duram por toda a vida ou que só atravessam algumas horas da nossa existência. Tomamos vinho, rimos e choramos, nos abraçamos e nos salvamos da dor; os amigos são botes, não nos permitem o afogamento. Penduramos quadros, cortinas, ajeitamos um tapete, mudamos o calendário, inventamos que podemos nos proteger do mundo neste teto. Inventar um lar não é difícil para quem sabe e quer ficar.

  Inventar um país é simples. Basta pensar em algumas planícies, alguma vegetação de preferência, árvores frutíferas, fauna exuberante em sons, cores e outras vidas que nos lembrem da desimportância da nossa. Para inventar um país é bom ter referências outras, de lugares que visitamos e que nos assombraram ou que nunca fomos, mas desejamos muito ou, ainda, que nos permitimos ir enquanto sonhávamos: Pasárgada, Terabítia, Neverland.
  Para inventar um país acrescentamos um tipo de governo que não nos traia, regras que não nos sufoquem, partilhas e afetos que não sejam condenáveis. Pensamos em bem-estar coletivo, garantia de direitos, mas antes pensamos quais os direitos devem ser universais. A invenção de um país pode requisitar uma geografia inexata e uma história em que nós caibamos espremidas, numa das margens, antes de virar a página de um livro didático
  Inventar uma fronteira, no país concebido, é questão de consenso ou de sorte. Paramos aqui ou vamos mais a frente? Um país que acabe quando cansamos de andar; este pode ser um limite. O que também poderá ser sempre ultrapassado, mas já será outro país, inventado por outro alguém.

  Inventar um caminho não é difícil para quem descobre que seguir as pegadas de outro alguém não é o bastante. Pode ir na direção contrária, desobedecer as placas, embrenhar-se pela mata e abrir novas passagens. Pode escolher um caminho que margeie rios, abismos, florestas ou esbarre repetidamente noutras vidas - risco maior. 
  Para inventar um caminho é bom esquecer daqueles outros que não são o seu. Não pedir mapas, indicações, conselhos dos afetos que sempre nos querem bem e que por isso acham que bom mesmo é segui-los. Inventar um caminho é abrir mão de possuir, desapegar e entregar-se completamente à insegurança das muitas possibilidades. Inventar um caminho é dirigir até um despenhadeiro e só se dar conta quando o carro voar.

  Inventar uma pessoa é bastante fácil, começamos quando ainda crianças. Um amigo imaginário que não nos deixa só, que nos espera na volta da aula, segura nossa mão quando temos medo, ouve os nossos segredos e os protege de quem não poderia ouvi-los. Inventamos um amor platônico, o professor de Educação Física, um ator de um filme favorito, alguém do outro lado da rua a quem nunca falaremos  olá. Uma melhor amiga também cabe na invenção, de quem não sabemos nem o sobrenome, nunca mais veremos depois do fim das aulas, mas foi a melhor amiga por meses seguidos, isto é o que importa. 
  Inventar alguém, por vezes, é muito mais frequente do que conhecer intimamente alguém. Projetamos identidades, cobrimos de ilusões, destacamos afinidades que são apenas coincidências superficiais e aleatórias, convocamos nossa criatividade a desenhar alguém que nos completaria, se nos faltasse mesmo uma peça.

  Inventar um sonho é processo remoto e familiar, por isso é simples. Um sonho é a nossa primeira invenção. Colocamos em dimensão onírica tudo que nos parece faltar ao redor: um lugar paradisíaco, um dia de verão tranquilo e fresco, uma música que nos acompanhe sem nos cansar, um cão que não tivemos na infância, o avô que não chegamos a conhecer, um cobertor, um emprego ou qualquer perspectiva de futuro. 
  O sonhos são embarcações sem limites de bagagem. Onde cabem palácios e quartos simples de um hotel em Lisboa ou no centro; cabem os amores distantes, aqueles já  mortos e, também, os que nunca existiram; cabem todos os diálogos com as palavras que nunca saíram de nós e as que ouvimos, mas faladas noutro tom, mais doce.
  Inventar um sonho é fácil e completamente necessário; podemos sim viver sem eles, mas aprendemos muito cedo que são eles que nos salvam das tempestades e nos atravessam até a outra margem de nós.

  Inventar um novo começo não é fácil, mas é possível e recorrente, para alguns. O mais difícil não é necessariamente inventar um outro futuro, mas admitir e abandonar o que já não é mais desejado. Inventar uma nova luta é criação diária, desconfio; inacabada.
  Inventar um outro destino é folha em branco, convite para a escrita arriscada e imprecisa. É bastidor  sem marcas desenhadas para cobrir em bordado, é linha e agulha sem pontos outros para acompanhar, é o desafio de criar desenho e marcas novas; começar de um quase vazio, porque a experiência não nos abandona, a mão já vem impregnada dela. 
 Reinventar um início não significa que os outros não foram bem sucedidos só por se perderem no caminho, nem o apagamento do que não pode avançar. Inventar um novo começo é ter olhos, ouvidos e sentidos abertos ao desconhecido e que também poderá ser amado.

  Inventar um amor já  não é possível. É tarefa que precisa ser conjunta e partilhada. A individualidade do sonho de um amor mata o amor. Quanto mais água no regador, mais seco o amor fica, o amor gosta de ele mesmo se levantar e buscar seus copos d'água. Como saber ter sede, se for afogado?
  Inventar um amor é criatividade conjunta; letra e música, desenho e tinta, argila e mãos, inspiração e poema. Podemos inventar uma casa para o amor, um país para que ele viva em liberdade, um caminho que seja menos árduo, um sonho sensual, um novo começo amoroso, uma pessoa a quem queremos amar, mas não podemos inventar o amor dentro destes outros amores. O amor é o maior mistério de invenção, porque não nasce sozinho, só sabe ser invenção acompanhada.









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