domingo, 23 de dezembro de 2018

As urgentes banalidades

   O ônibus não está tão cheio, é o terceiro da fila e os dois da frente sim estão lotados. No corredor, sou eu e mais três. Quando ela entra é mais uma a colocar o rosto a disposição da janela. Faz muito calor, mas agora venta. Embarca no ponto em frente ao shopping, os cabelos pretos estão presos num coque alto, com alguns fios soltos, molhados de suor, a camiseta com a logo da loja em que provavelmente trabalha também está um pouco molhada. É baixa e, mesmo com uma sandália alta, quase não alcança a barra de ferro superior, até tenta uma vez, mas fica torta e desiste. A bolsa marrom no ombro parece pesada e bate, duas vezes seguidas, no ombro de um rapaz. Trabalhou o dia todo em pé. Está cansada, mas sorri com os olhos fechados, enquanto o vento levanta os fios soltos do seu coque. Vê-la gostando tanto assim do vento, me faz gostar mais dele também. É um alento tão simples e ela parece apaziguada, mesmo exausta.
  O rapaz cujo ombro foi atingido algumas vezes pela bolsa, oferece o seu lugar a ela, porque vai descer logo. Ela se senta, estica as pernas, relaxa os braços, as pálpebras e o maxilar, já fechava os olhos quando retesou os músculos novamente e buscou algo no fundo da bolsa marrom. Depois de alguns segundos de busca, tirou um pacote transparente, fechado por um laço laranja com alguns chocolates dentro e escolheu um deles para o rapaz, que já havia dado o sinal e se aproximado da porta para descer. Ela se levantou rápido, alcançou a mão dele e o obrigou a segurar a oferta. Ele se surpreendeu, esquivou-se no início, mas agradeceu, quando entendeu o gesto.  Desceu sorrindo, ela se sentou, novamente, sorrindo e eu também sorri.

  O vento fresco da janela do ônibus num dia de calor insuportável, a oferta de um lugar a alguém cujo corpo está muito próximo ao seu limite, o desejo de retribuição pela visibilidade inesperada e um chocolate quase amassado nas mãos de um desconhecido, que nem ela e nem eu veremos outra vez, são as banalidades de uma pequena viagem urbana que trazem a alegria possível e que não temo  perder, porque não foi buscada, só veio.
  Aperto o meu livro com mais firmeza, termino o único poema lido na viagem e acho que quem descansou fui eu, quem esticou as pernas, relaxou os músculos e se refrescou com o vento da janela do ônibus fui eu, quem aceitou um chocolate e sorriu também fui eu.
  É difícil explicar o contentamento pelas pequenas felicidades alheias, mas sentir não é complicado. É possibilidade democrática, cujo pertencimento é perecível, mas sempre possível.

  Eu desço do ônibus, olho-a pela janela transparente e ela ainda descansa, sem o sorriso de antes, mas com o rosto ainda sereno. Tenho o meu livro, a minha bolsa bem menor que a dela e o meu cansaço, diferente do dela, mas apaziguado como o dela. Subo a rua, sentido o cheiro da Dama-da-noite da esquina, sonhando com um jardim de hortênsias, como o do prédio cinza e achando o céu estrelado a sorte mais plena de uma pessoa. Tudo, desconfio, desencadeado pelos gestos no ônibus ou pela poesia que eu levo comigo nos últimos dias a qualquer lugar em que eu possa ler. E querer mais o quê, além dessa banalidade recém testemunhada?
  Vou caminhando e sonhando com as alegrias que transbordam os meus vazios. Quero a banalidade de um beijo amoroso na mesa de café da manhã, uma almofada xadrez no sofá macio da casa em que eu moro, um cão resistindo à coleira, ao banho, à palavra de comando do adestrador; só por ser cão e se afirmar a cada negativa.

  Subo a minha rua sonhando com banalidades antigas, despedidas longas na soleira da porta, com a intensidade de uma vida, a viagem é curta, mas a saudade é infinita, antes de dobrar a esquina e o corpo só quer o outro corpo, o ouvido sente a mudez da voz preferida, os cômodos da casa dobram de tamanho, o outro lado da cama é longe demais e as horas custam muito a passar. Não dói, porque sabemos que essa é uma solidão que acaba, dois dias riscados no calendário e a casa volta a ter presença e calor, como se nunca tivessem feito as malas.
  O corpo quente ao sol, no dia mais frio do ano, minutos de raios luminosos e mornos nos pés com meias de lã e a xícara de chá quente nas mãos, refletindo o céu de inverno.
  A notícia de alguém de longe, que nem sabíamos se ainda pensavam em nós, e sim, pensam muito, sentem saudades e mandam boas novas do outro lado do oceano. Achamos delicada a lembrança e o sentimento de levarmos alguém para sempre e este alguém também nos levar, mesmo que nunca disséssemos nada, o que de mais indissolúvel pode existir.

   Chego em frente ao meu prédio e, enquanto procuro a chave para abrir o portão, me lembro das banalidades de infância, do pique esconde, na salada de fruta - uma para cada gesto de afeto - nos tios muito jovens que achávamos que eram velhos e hoje temos mais idade do que eles, quando os achávamos velhos, e nos sentimos sobrinhos ainda muito jovens. A véspera de natal e os presentes que nunca vinham e, mesmo assim, nunca deixamos de sonhar que viessem, cada ano uma decepção e uma esperança nova, logo nos perdíamos da desilusão e andávamos abraçados à esperança pelos próximos doze meses.
  Medo de cachorro de rua, de gente desconhecida, de nota vermelha, de conversa com a diretora da escola, da violeta genciana não sair da franja até o dia de fazer a foto para a carteira de identidade - a mãe ameaçou que a foto não seria adiada por causa da franja lilás.

  Subo as escadas do prédio, enquanto celebro as banalidades atemporais, as mãos dadas e o ombro firme oferecido, quando a vulnerabilidade ventava. As promessas de eternidade, de profundidade, de presença em qualquer circunstância e a crença em todas elas, muitas vezes, mesmo que tenham falhado sempre.
  Banalidades que nunca vão embora, a palavra, o gesto, a entrega sem certeza, sem querer certeza. Sem perguntas, sem ressentimentos pelas perguntas feitas, pelas dúvidas do outro, pelas incertezas e medos, mesmo assim a entrega. O corpo solto no salto, sem medo de escapar da cama elástica.

  Banalidades do destino, o reencontro com um amor antigo, décadas depois, ter os filhos que não tiveram ou batizar os filhos dos amigos que tiveram. Partilhar de lembranças evidentes para um, muito apagadas para o outro e oferecerem o agora de cada um, nítido para ambos.
 Banalidades que nos salvam da dor do mundo, o beijo do filho, o abraço orgulhoso do pai, o olhar lacrimoso e emocionado da mãe, a música inesperada que nos devolve a lembrança, a presença, o sonho.
  Abro a porta de casa e a almofada xadrez é a minha primeira visão de lar, bastou um vento fresco no ônibus, uma mulher com coque, um lugar no ônibus para o corpo cansado, o chocolate prensado nas mãos de um desconhecido e, de novo, tudo ficará bem. O dia hoje pedia banalidades, era urgente e chegou numa linha de ônibus urbano sem ar condicionado.




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