O rapaz cujo ombro foi atingido algumas vezes pela bolsa, oferece o seu lugar a ela, porque vai descer logo. Ela se senta, estica as pernas, relaxa os braços, as pálpebras e o maxilar, já fechava os olhos quando retesou os músculos novamente e buscou algo no fundo da bolsa marrom. Depois de alguns segundos de busca, tirou um pacote transparente, fechado por um laço laranja com alguns chocolates dentro e escolheu um deles para o rapaz, que já havia dado o sinal e se aproximado da porta para descer. Ela se levantou rápido, alcançou a mão dele e o obrigou a segurar a oferta. Ele se surpreendeu, esquivou-se no início, mas agradeceu, quando entendeu o gesto. Desceu sorrindo, ela se sentou, novamente, sorrindo e eu também sorri.
O vento fresco da janela do ônibus num dia de calor insuportável, a oferta de um lugar a alguém cujo corpo está muito próximo ao seu limite, o desejo de retribuição pela visibilidade inesperada e um chocolate quase amassado nas mãos de um desconhecido, que nem ela e nem eu veremos outra vez, são as banalidades de uma pequena viagem urbana que trazem a alegria possível e que não temo perder, porque não foi buscada, só veio.
Aperto o meu livro com mais firmeza, termino o único poema lido na viagem e acho que quem descansou fui eu, quem esticou as pernas, relaxou os músculos e se refrescou com o vento da janela do ônibus fui eu, quem aceitou um chocolate e sorriu também fui eu.
É difícil explicar o contentamento pelas pequenas felicidades alheias, mas sentir não é complicado. É possibilidade democrática, cujo pertencimento é perecível, mas sempre possível.
Eu desço do ônibus, olho-a pela janela transparente e ela ainda descansa, sem o sorriso de antes, mas com o rosto ainda sereno. Tenho o meu livro, a minha bolsa bem menor que a dela e o meu cansaço, diferente do dela, mas apaziguado como o dela. Subo a rua, sentido o cheiro da Dama-da-noite da esquina, sonhando com um jardim de hortênsias, como o do prédio cinza e achando o céu estrelado a sorte mais plena de uma pessoa. Tudo, desconfio, desencadeado pelos gestos no ônibus ou pela poesia que eu levo comigo nos últimos dias a qualquer lugar em que eu possa ler. E querer mais o quê, além dessa banalidade recém testemunhada?
Vou caminhando e sonhando com as alegrias que transbordam os meus vazios. Quero a banalidade de um beijo amoroso na mesa de café da manhã, uma almofada xadrez no sofá macio da casa em que eu moro, um cão resistindo à coleira, ao banho, à palavra de comando do adestrador; só por ser cão e se afirmar a cada negativa.
Subo a minha rua sonhando com banalidades antigas, despedidas longas na soleira da porta, com a intensidade de uma vida, a viagem é curta, mas a saudade é infinita, antes de dobrar a esquina e o corpo só quer o outro corpo, o ouvido sente a mudez da voz preferida, os cômodos da casa dobram de tamanho, o outro lado da cama é longe demais e as horas custam muito a passar. Não dói, porque sabemos que essa é uma solidão que acaba, dois dias riscados no calendário e a casa volta a ter presença e calor, como se nunca tivessem feito as malas.
O corpo quente ao sol, no dia mais frio do ano, minutos de raios luminosos e mornos nos pés com meias de lã e a xícara de chá quente nas mãos, refletindo o céu de inverno.
A notícia de alguém de longe, que nem sabíamos se ainda pensavam em nós, e sim, pensam muito, sentem saudades e mandam boas novas do outro lado do oceano. Achamos delicada a lembrança e o sentimento de levarmos alguém para sempre e este alguém também nos levar, mesmo que nunca disséssemos nada, o que de mais indissolúvel pode existir.
Chego em frente ao meu prédio e, enquanto procuro a chave para abrir o portão, me lembro das banalidades de infância, do pique esconde, na salada de fruta - uma para cada gesto de afeto - nos tios muito jovens que achávamos que eram velhos e hoje temos mais idade do que eles, quando os achávamos velhos, e nos sentimos sobrinhos ainda muito jovens. A véspera de natal e os presentes que nunca vinham e, mesmo assim, nunca deixamos de sonhar que viessem, cada ano uma decepção e uma esperança nova, logo nos perdíamos da desilusão e andávamos abraçados à esperança pelos próximos doze meses.
Medo de cachorro de rua, de gente desconhecida, de nota vermelha, de conversa com a diretora da escola, da violeta genciana não sair da franja até o dia de fazer a foto para a carteira de identidade - a mãe ameaçou que a foto não seria adiada por causa da franja lilás.
Subo as escadas do prédio, enquanto celebro as banalidades atemporais, as mãos dadas e o ombro firme oferecido, quando a vulnerabilidade ventava. As promessas de eternidade, de profundidade, de presença em qualquer circunstância e a crença em todas elas, muitas vezes, mesmo que tenham falhado sempre.
Banalidades que nunca vão embora, a palavra, o gesto, a entrega sem certeza, sem querer certeza. Sem perguntas, sem ressentimentos pelas perguntas feitas, pelas dúvidas do outro, pelas incertezas e medos, mesmo assim a entrega. O corpo solto no salto, sem medo de escapar da cama elástica.
Banalidades do destino, o reencontro com um amor antigo, décadas depois, ter os filhos que não tiveram ou batizar os filhos dos amigos que tiveram. Partilhar de lembranças evidentes para um, muito apagadas para o outro e oferecerem o agora de cada um, nítido para ambos.
Banalidades que nos salvam da dor do mundo, o beijo do filho, o abraço orgulhoso do pai, o olhar lacrimoso e emocionado da mãe, a música inesperada que nos devolve a lembrança, a presença, o sonho.
Abro a porta de casa e a almofada xadrez é a minha primeira visão de lar, bastou um vento fresco no ônibus, uma mulher com coque, um lugar no ônibus para o corpo cansado, o chocolate prensado nas mãos de um desconhecido e, de novo, tudo ficará bem. O dia hoje pedia banalidades, era urgente e chegou numa linha de ônibus urbano sem ar condicionado.
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