segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Macabéa ainda pede desculpas

  Cimentaram o jardim. Logo agora que a chuva cai abundante; natureza pronta para fazer nascer qualquer semente, muda ou broto e jogaram cimento sobre o jardim que eu admirei secretamente por uma década. Não que ele fosse meu, não que eu tivesse a quem clamar para que não o cimentasse, mas me sinto completamente partida, desolada, enlutada por uma morte que eu não pude velar.
  Três dias que eu não fui caminhar e mudam a cidade, três dias que eu não me levanto animada o suficiente para ver o jardim e o cimentam.
  Não acompanhei o seu fim, não soube que era a última vez que o veria, quando o vi pela última vez. Talvez eu o tivesse guardado mais profundamente, demoraria mais minutos observando-o, talvez tirasse uma foto ou  plantasse uma dúvida em quem estivesse pronto para enterrá-lo:
- Tem certeza? Não vai deixar nem um pedaço sem cimento? E aquela roseira ali, também?
  Não fiz, não pude, não soube. Na minha ausência pelas ruas, esses últimos dias, sepultaram o verde, os galhos com flores do campo, as duas roseiras e o arbusto com girassóis. Nem o coqueiro foi poupado.

  Cimentaram o jardim, não deixaram uma hortênsia nem margarida, nenhum contorno de grama ao redor de um passeio de tijolos, um fio sequer de natureza que viesse da terra.
  Quem, depois de dez anos, acha que um jardim não serve mais? Quem decide que as cores da cidade não pertencem a ela? Quem não se comove com aromas, texturas, vidas de diversas espécies num canteiro e soterram o seus habitats em dureza e cinza?
  Quem foi que abriu mão da terra exalando o aroma da saudade em dia de chuva? Quem não pensou que alguém na cidade resistia inspirada por aquele pedaço de natureza? Quem foi que escolheu um passeio cinza, plano, liso, inflexível, inodoro e infrutífero no lugar do jardim?
  Quem preferiu luvas à sentir com a pele outra pele, um rio, o vento gelado, a textura de um papel, uma parede, um cabelo, um vegetal? Quem escolheu a distância entre outras vidas à sua comunhão?

  Cimentaram o jardim, porque ele é incerto, às vezes é úmido demais e o rodapé da sala do apartamento no primeiro andar pode se soltar com o tempo; noutras vezes, quando ele resseca, é preciso que o reguem depois do pôr do sol e antes do nascer do sol.
  Desistiram do jardim, porque ele não obedece às leis do silêncio, da boa convivência, do  descanso do feriado e do final de semana. O jardim tem suas vozes incontroláveis, seus cheiros diversos, seu crescimento próprio.
  Abandonaram os cuidados com o jardim, porque é este um tempo de pensar na própria sobrevivência, porque flores pequenas não dão dinheiro, porque ninguém coloca mais flores frescas em um vaso sobre a mesa.

  Eu, ontem, depois de chorar pelo jardim, voltei ao meu livro, que releio depois de quase quinze anos. Eu não queria amar Macabéa, mas não sei não amá-la. O seu gosto por cachorros-quentes e Coca-Cola, os relatórios do escritório sujos de gordura, sua amiga Glória e seu namoro com Olímpio me angustiam. Rodrigo SM e sua máquina de escrever que decreta o início e o fim de Macabéa me deixam aflita.
  Mas Macabéa pede desculpas, come bolo, colhe flores e é esperançosa. Macabéa também amaria o jardim e nisto somos muito parecidas. Eu não deixo de amar Macabéa e o jardim, porque eu os ouço e escutar é o único segredo do amor.

  Enterraram o jardim, não há digitais, vestígios explícitos do algoz que definiu o destino de centenas de vidas invisíveis e dezenas de outras, deslumbrantes. Eu não tenho a quem odiar, por isso, perdoo.
  Não puderam amar o jardim e isto não é incomum. Não o ouviram, não o viram, não escolheram pertencer a ele, mas serem donos e, por isso,  decretar seu fim era competência do tempo.
  Não é amor se não vê, não é amor se não pode ouvir, não é amor se chamá-lo de seu. De repente, o amor é esse vazio que se comunica com outro vazio; preencher não é. Eu amava o jardim e amo Macabéa porque não são meus e são, para sempre, incompletos.

  Também cimentaram-me algumas dezenas de vezes e, eu acho, que alguém de tanto chorar pelas minhas folhas ajudou a fazê-las crescerem de novo. Não acabo quando me enterram. Sempre imagino que alguém também me olhe e me ame, enquanto caminha; me entenda incompleta. Fiquei três dias sem sair às ruas e, quando volto, estou podada e um tanto partida.
  Macabéa ainda pede desculpas na minha cabeceira, mataram as flores e eu me sinto tão deserta quanto o jardim que cimentaram. Acho que é tempo de resistir e tentar nascer de novo.

  Algumas coisas mudam; cimentaram o jardim e eu terei que aprender a me acostumar. Não me perguntaram nada sobre as plantas, só cimentaram o jardim, foi o que fizeram.
   Nas páginas do livro ao lado da minha cama, Macabéa ainda pede desculpas. Eu nunca abandono Macabéa, porque ela me inspira esperança. Ninguém pode cimentar Macabéa, ouviram?
  Cimentaram o jardim, mas minha esperança cresce como erva daninha, abre fendas, rompe os pedaços de concreto mais frágeis, acredita na vidente e não sabe que pode ser atropelada.
  Cimentaram o jardim, mas algumas raízes nunca desistem dos seus brotos.






2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Amanda, 06 de dezembro de mil novecentos e minas grais

Mudar dói, mudar em si dói, mudar o outro dói, e as mudanças dos outros em nós dói mais que a mudança que permitimos nos fazer.

Serei breve, brevíssimo, apenas para indicar a leitura desta biografia da mudança, de uma mulher que entendo ser a Amanda ad Física Quântica: https://elikatakimoto.com/2018/12/06/mudancas/

Então é isto. Hoje estou mudo, mais nada!

Um abraço em sequencia à saudação de sucesso à sua vida!

Amanda Machado disse...

Minas, seis de dezembro deste ano que nos empurra para as mudanças

Querido Paulo,
mudar dói, não mudar nos torna inférteis, desérticos, áridos...
Vamos aos novos ares...com armários tortos e medo, mas vamos!

Amei a indicação do texto (adoro a Elika!). Mesmo quando (quase) mudo você é certeiro!
Abraços,
Sucesso para nós!