terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Do teto ao chão: algum dia será o último sem chover


   Levantou duas horas mais cedo, abriu as janelas do quarto e desligou o ventilador que tem feito um barulho demasiado irritante, assobio estridente, rangido metálico, talvez seja alguma hélice torta, algum fio dobrado, ruela solta ou parafuso frouxo, mas não pode levar para consertar ainda, porque está calor demais para ficar sem ele. Não ferveu a água para o café, porque tem estado muito quente para a bebida. Deitou-se no sofá, mas não ligou a TV, as notícias são tristes demais para um estômago em jejum e nem quer comer, agora. Tem sede, mas a secura é para além da garganta e diafragma, as palavras saem craqueladas dela, agora.
  Há um deserto, que ela sabe temporário, que não poupa seus gestos, olhos, disposição. Tudo é secura e tempestades de areia fina; o corpo até está acostumado, mas não tem alma adaptada para suportar o tais desertos que se instalaram nela nos últimos meses. Nem chorar tem conseguido.

  O gato foi o primeiro a perceber a mudança no microclima da mulher que lhe dá comida, gosta de acariciar o seu pelo, leva-o ao homem das luvas que o investiga uma vez a cada três meses, mas que também dança sozinha na cozinha, ouve rock progressivo, blues, folk e música nacional, enquanto limpa a casa e empilha livros na escrivaninha, em cima da cama e na cadeira da sala que ninguém senta, porque está sempre ocupada de papéis. Por isso tem saído mais cedo, se ele não pode aguá-la também não consumirá suas últimas gotas de afeto. 
  O sol já brilha alto lá fora, o gato já saiu e, a esta hora, há somente o barulho da vassoura nas mãos da moça da limpeza do prédio, que esfrega o corredor bem em frente à porta. Às vezes oferece café à moça e ela aceita, hoje não tem café, por isso prefere nem abrir a porta. E dizer o quê? O que tem para oferecer nesses dias, se parece não ter o suficiente nem para si.
 
  Levantou-se do sofá, porque não vai mais conseguir voltar a dormir, mesmo fora da cama. Ainda que afastada das lembranças impregnadas nos lençóis, fronhas, travesseiros, colchão, cortina, tapete, no copo em cima da cômoda, não a salva do deserto que é o fim. A ausência pressentida e inevitável é a massa de ar seca que se desloca sobre a sua geografia. Alcança planícies e abismos, evapora sonhos suculentos e aspira toda a umidade dos desejos que antes transbordavam.
  Afastar-se dos odores, das cores da parede e da camiseta que não é sua, não leva embora a consciência de um óbito.
  Levantou-se e foi buscar um copo com água, abriu a geladeira, inspirou o ar gelado e o expirou quente de novo. Meio litro de líquido e, ainda assim, não levou embora o deserto dos último tempos. A garganta está molhada e o coração é um pedaço de barro ressequido. Se as palavras fossem só dos lábios poderia falar sem secura, mas elas nascem no profundo, onde a água da garrafa não chega.

  Como dizer sobre o fim? Como ligar para alguém e dizer que um ente querido partiu? Como dar a notícia de um falecimento a alguém cujo laço com o finado é tão estreito?
  Às vezes é só a confirmação de uma desconfiança, às vezes é só a leitura em voz alta de um texto já conhecido. Mas como fazê-lo nessa secura, se tudo antes era promessa de abundância? Como não contaminar com areia e vento uma paisagem tão verde de um passado recente?
  Numa carta com envelope de flores ou tomando um café no Centro? Numa mensagem longa no telefone ou a voz embargada numa ligação antes do final do dia? Como doerá menos? Como fazer ser possível uma vida de lembranças menos áridas, se no fim é impossível chover?
  A burocracia da morte nos lembra o quão preciosos eram os últimos dias de vida, antes do derradeiro suspiro. Segurar um atestado de fim é a cerimônia mais triste para quem não sabe o que fazer com ausências inevitáveis.

  O deserto chegou desde que soube que não era possível mais manobra alguma de ressuscitação. O gato quis avisá-la, mas ela é humana demais para entender os sinais de um gato amarelo; teve que constatar sozinha.
  Ontem era desértica e solitária na cama dividida, até receber duas boas notícias de conhecidos e isto é também uma justiça possível: há gente feliz, mesmo quando no mundo a estiagem é demorada. Noutros lugares a chuva pode estar molhando. Sentiu um conforto maior para respirar e foi dormir. Voltará a ser feliz algum dia, mesmo depois de enterrar um corpo ou, ainda, será uma outra felicidade; alegria diferente para alguém que já não é a mesma.
  Acordou duas horas mais cedo, com os lábios rachados pelo vento seco do ventilador barulhento. Um homem saiu pela porta durante a madrugada, mas antes dele, o amor que não suportou a seca dos últimos tempos.

  Ainda na cozinha, abre a geladeira, de novo,  pega uma garrafa e dois copos, sai pela porta da sala e chama a moça da limpeza:
- Toma uma Coca-cola comigo?
  Sentadas na escada do prédio, às sete da manhã, duas mulheres suadas tomam Coca-cola ,enquanto refrescam suas costas no mármore do hall e deitam na escada, por alguns minutos, o peso que cada uma carrega.
- Coca-cola não mata a sede, eles dizem, mas refresca muito, né? Melhor coisa nessa secura.
  Disse a moça da limpeza.
  Às vezes, no deserto,  uma Coca-cola é mais urgente do que uma tempestade de água. Se a chuva vem hoje, amanhã ou daqui a um mês não dá para saber, a previsão climática no apartamento ainda não é possível.

  Mas acabou. Morreu. Foi embora para sempre. Secou. Soubemos ao mesmo instante que o gato, mas não dissemos.
  Depois da Coca-cola, vai se sentar e começar uma carta. Esse é o seu ritual de despedida mais antigo. Assim enterra os seus mortos, com palavras escritas em tinta preta. Um atestado de fim, com um verso de Yeats na lápide "Existe um outro mundo, mas ele fica neste mesmo". Fechará o envelope e fim. A camiseta será lavada e vai devolvê-la ao dono ou guardá-la sem o cheiro da lembrança. O gato vai voltar a cercá-la de novo. Depois da burocracia e dos rituais, vai poder chorar e no apartamento, de novo, vai chover. Será água do teto ao chão, algum dia o deserto se afastará de novo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Tristes, 02 de fevereiro de 2019

Querida Amanda
Escritora da maior supimpitude feminina do universo

Há esta elucidação do mundo mulher que você trás á tona para olharmos com olhos masculinos, e ver e enxergar e perceber que a beleza está além das curvas, da vaidade e do batom.

A indústria cinematográfica, principalmente no pós-guerra, com a dominação do sistema apache/sioux, reduziu a mulher a um objeto. Mereceria uma tese isto, mas foi isto mesmo. Ontem li nao sei onde que uma nõa sei quem falou que feministas são todas "daquele" partido. Só falou isto graças às feministas, senão teria que ficar calada.

Bem, trouxe aqui um poema da Gilka Machado, escondida pelos regimes não democráticos e "esquecida" pelos críticos literários. Espero que goste do presente:

Ser mulher
Gilka Machado
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tentálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

É isto aí! Eu ia falar sobre cartas e descartes, mas fica para outro dia. Um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas tristes, 05 de fevereiro deste ano de 2019 (o que dele poderemos fazer? O que depois dele seremos?)

Querido Paulo,
Minas Gerais sente os reflexos do patriarcado capitalista, este mesmo eleito, comemorado e reafirmado a cada dia com mais ardor. Como podem? Como poderemos com eles? Alguns deles odeiam o feminismo, dizem que preferem o hu
manismo... porque ainda não admitem as mulheres como humanas. Feminicídios crescentes, transfobia, homofobia, misoginia...e do outro lado, ministérios tresloucados, supremo subserviente e um representante máximo da nação, encarnando aquilo que há de mais tosco. Enfim, o panorama não nos parece bom.

Mas temos Gilka Machado, você me apresentou essa mulher incrível...cuja biografia (trechos dela) eu tive o prazer de pesquisar e conhecer mais detalhadamente. Gilka é uma inspiração e serei eternamente grata por este encontro que você me proporcionou.

"Ser mulher, e, oh! atroz, tentálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!"

E Gilka sabia muito bem do que estava falando...

É isto Paulo...o cenário é péssimo, mas suas cartas amenizam ou, ao menos, fazem companhia às minhas angústias.
Abraços,
Amanda