
que os atalhos não levem onde prometiam, tampouco chegar a tempo se atravessar pelas estradas mais longas. Cansada de caminhar todos os dias pelas mesmas ruas, vê-las a cada dia diferentes e temer não ter a quem contar quando chegar em casa - ou porque já se foram todos ou porque ninguém faz o mesmo trajeto que eu.
Cansada de ter medo de falar o que não é conveniente, cansada de procurar sinônimos das palavras que eu sempre usei e achar que elas é que dificultam ao estrangeiro o acesso a minha alma. Cansada da covardia do silêncio para não incomodar os outros, não causar estranheza, não colocar em suspeita a confiança.
Mais cansada de temer a tristeza do que a tristeza em si. Cansada de desviar das notícias ruins, dos rompimentos, da aceitação da mudança de trajetórias, perspectivas e vontades. O outro e eu que fomos paralelos, agora temos raios que tomam direções opostas.
Cansada de temer o medo.
Cansada de ser ferida e cortar alguém para aliviar a minha dor; que só aumenta ao desembainhar o punhal. Cansada dos ressentimentos que alimento escondida, para os quais ainda deixo cair farelos e linhas de água. Cansada de criar pestes domésticas em gaiolas, que não cantam quando se sentem só, mas envenenam ninhos saudáveis.
Cansada de mágoas que não são minhas, as quais seguro enquanto alguém vai ao banheiro, mas nunca volta. Cansada de estacionar vinganças em vagas pequenas para alguém comprar cigarros. Na volta, sou sufocada mais pela espera em lugar ruim do que pela fumaça do cigarro.
Nicotina mata tanto quanto a raiva.
Exausta da suspeita de não saber fazer a escolha certa, de não saber ler os olhos das pessoas, de não reconhecer o perigo nas vozes suaves que chamam pelo meu nome.
Exausta da desconfiança que eles dizem que irá me proteger. E estar afastada do mundo para não morrer, mas estar afastada também não é um não-viver?
Exausta de conhecer desfiladeiros, escalar muitas montanhas, saltar sobre abismos e ainda manter um dos pés atrás. Exausta de sacrificar os meus músculos não apostando tudo.
Exausta da dúvida nas meias-palavras, sob meias-luzes, nesse meio-tempo sem certezas da meia-estação. Exausta de procurar por inteiros, quando nunca há.
Exausta pelas noites de insônia vazia, sem as expectativas dançando pelas paredes do estômago, sem o rosto do amor, congelando as pálpebras abertas. Exausta pelos sonhos que não chegam, porque a batalha de uma pessoa contra ela mesma adentra pela noite estrelada.
Exausta pelo céu não contemplado, pelas criaturas não admiradas, pela música que nunca mais tocou na casa.
Exausta pela escuridão autoimposta, pelo castigo de querer ter tido toda a luz para si. Exausta da justiça que só tem olhos para a punição.
Dissidente da militância que não escuta, que não se enternece e abandona o campo de batalha, porque um cão se feriu. Dissidente das investidas que não conhecem as pupilas da humanidade, não se interrogam nunca sobre as suas práticas, não se fragilizam publicamente.
Desistente da luta que esqueceu a poesia; que não ouve, não lê, não cita, não dialoga ou não crê nos poetas. Exilada na lua com Carlos Pena Filho, Florbela Espanca, William Carlos Williams e Anne Sexton; porque a poesia mora no alto. E é para lá que eu vou, quando me canso.
Deslocada da competição, da corrida com linhas, obstáculos, pinos de revezamento que sempre cairão.
Resistente às comparações com os outros, as outras, comigo em outros tempo, com o que eu gostaria, com o que sonharam.
Fugitiva das fotos sem alma, sem vontade ou que interrompem uma conversa, uma ideia, um momento que nunca mais voltará.
Rebelde contra os espelhos censores, os olhos abusadores, as mãos que prendem e não sabem soltar.
Desertora da violência comigo, com os outros que eu conheço e com quem eu nunca nem sentei numa poltrona de ônibus, mas por quem eu também posso me comprometer.
Cansada de temer que ao amá-lo, eu não consiga mais chegar até mim. Cansada de temer que o amor que salva pode me condenar ao fim. Cansada de pensar sobre o que seria se Pessoa não tivesse desistido do encontro com Cecília. Não foi, não deu, nunca se viram. O que importa é que as suas vozes persistem, distantes e, num mesmo tempo muito próximas deles e de nós.
Agora, depois de tudo, abandonada ao sentido mais importante de uma existência: sentir. Gastar tudo, até o medo ir embora e deixar que tudo seja amor.
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