domingo, 10 de fevereiro de 2019

Brisa leve, vento forte. Talvez o choro seja a sorte

   No primeiro dia choveu, mas como era chuva de verão não durou muito e a amarelinha desenhada na calçada de uma das ruas pelas quais passei, continuava visível quando eu voltei pelo mesmo caminho horas depois. Eu quis pular, quis tentar acertar a pedra numa das casas com número, mas as férias acabaram;  há mais de uma década.
  Não tomei chuva, minha sandália não arrebentou, não falei o que ninguém queria ouvir e não senti dores nos joelhos; estive feliz, mas não pulei a amarelinha.
  No segundo dia não choveu, não passei pela rua com a amarelinha, por isso não pensei em jogar nenhuma pedra numa das suas casas com número, mas me deitei pensando como seria no dia seguinte. O segundo dia foi todo ele gasto em esperar pelo terceiro. Estive feliz, mas me ausentei do segundo dia, porque esperava pelo seguinte.

  No terceiro dia choveu de novo. A chuva também não demorou muito e o homem voltou a pintar o muro ao qual ele se dedica há dois meses. Como ele usava tinta vermelha para as letras de uma das frases da propaganda, meu tênis branco ficou salpicado de gotículas carmim, porque parei bem em frente à pintura para abrir o guarda-chuva. Ninguém as vê de longe, mas eu sei que elas estão lá. Voltei um pouco molhada, com o tênis colorido, mas com a alma mais aliviada por não ter perdido o caminho; embora ainda exista a dúvida se era esse que eu queria ou se, talvez, ao menos ele é que me chama. Quem é que responderá a dúvida que não sai de mim? Se não eu, ninguém mais.
  Voltei leve e, ao mesmo tempo, desiludida. Como se eu esperasse que tirando o peso eu pudesse correr mais rápido, mas descobrisse que não era possível correr agora. Para onde vão as amarelinhas que não pulamos, porque acabaram as férias? Na segunda chuva, aquela da calçada apagou-se completamente.

  No quarto dia, subindo pela calçada da amarelinha apagada eu vi um chapéu de verão, de abas largas, tom pastel, com um lenço azul de bolinhas brancas, estava no banco de trás de um carro estacionado. Era só o chapéu e o carro vazio, mas a subida inteira eu passei pensando no chapéu. - Quem trouxe a praia para a semana cinza de fevereiro?
  Não sei se era  um chapéu de partida, de alguém que foi embora e o esqueceu ou de descanso, para alguém que ainda vai voltar. Mas era um chapéu inesperado na rua abarrotada de carros com vidros escuros. Era o meu desejo de praia, de verão sem hora para voltar para casa, mas as férias acabaram há quase vinte anos. Por que passou tão rápido? Só os agoras demoram.
  Mas eu voltei feliz com a imagem do chapéu no banco traseiro de um carro, desejando ter um igual no próximo verão.
- Teremos outras três estações antes de eu poder ter um desses.
  No quarto dia não choveu, o céu era o mais escuro da semana, ventou, o cheiro da chuva entrou pelo basculante da sala, mas a chuva não veio. A chuva foi só um nó na garganta, o choro interrompido pelo orgulho de quem não queria ter sua vulnerabilidade perscrutada. Para onde vão os choros que não saem? São só engolidos ou se transformam noutra coisa? Uma massa de ar triste, quem sabe? 

  No quinto dia, o cinza cobriu o azul do céu de novo e veio sim um pouco de água, mas nem abri o meu guarda-chuva, caiu leve e muito rápida, quase cumprindo uma burocracia do verão quente.
  Na janela do terceiro andar do prédio antigo, uma fileira de flores artificiais e vidros de detergentes começou a ser desfeita para as mãos fecharem qualquer possibilidade de uma chuva que molhasse o chão recém limpo. Não dura a chuva e as mãos virão abri-la de novo, quando eu não estiver mais aqui. Teve sol até às dezenove horas, depois da chuva comedida. Voltei sob o céu dourado não sabendo se o que eu tinha era tristeza fina como a chuva ou só sede. Não chovi, continuei seca.
 O muro já está quase pronto e o meu tênis vai levar pela cidade as cores de uma propaganda cujas letras eu vi surgirem uma a uma.
 Para aonde vão os nascimentos que assistimos, mas que não são nossos nem parimos? É responsabilidade do testemunho levá-los para onde formos. E contar sobre eles, talvez, também seja.

  Uma amarelinha na calçada de uma rua de bairro, sem crianças ao redor, porque foram todas para a escola, um muro com letras gigantes preenchidas de cor e suor há dois meses, um chapéu de verão trancado em um carro, uma fileira de detergentes e flores de plástico e uma chuva minguada de um céu que prometeu bem mais, tudo isto inaugurando uma nova temporada ou será que fechando outra?
 Eu sabia que a felicidade passava por esse caminho, eu a procurei por tanto tempo e agora soube encontrá-la, o que eu não sabia é que vê-la não me poupa dos tropeços da rua de asfalto irregular.

  No último dia, fui de vestido azul e sorri bem mais vezes. Como não ser feliz se a cidade se entrega a mim, agora? Como não sentir-me melancólica antes de dormir ao me lembrar de todas as anteriores negativas da cidade para mim?
  Sexta à noite e o vento me ajudou a chegar em casa. Deve existir uma gruta, uma fenda no solo, imperceptível, aos meus atrapalhados olhos de humana, onde os verdadeiros sonhos descansam  irrealizados. Eles devem, em algum lugar, encontrar um peito que os receba e os embale para voltarem a visitar as noites vazias de alguém.

  Deve existir alguém que use chapéus, que pinte muros, faça faxinas e entenda a imprecisão do futuro que planejamos. Ele vem, é feliz e insatisfatório; veste camisa branca com o colarinho um pouco levantado, carrega no mesmo bolso alegria e melancolia. Sorri quando está triste e, no mesmo dia, se rompe em um temporal contente às duas da tarde. Não faz mal. Brisa leve na sexta-feira, vento forte na segunda. Talvez chover seja a grande sorte. Apagar a amarelinha para aprender a pular na sombra do seu desenho. Tudo bem se não tiver férias; pular amarelinha pode ser em qualquer tempo, até em dia de chuva.



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