sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Deve existir o mesmo coração, mas que bata sem doer tanto

  Em um universo paralelo a este, no qual envelheço, deve existir um gato tão amarelo quanto o que me ignora agora. Um gato com olhos saltados, pelo eriçado e boca semiaberta, mas ao contrário deste, o outro tenta entender a sua dona, tenta falar uma língua que seja comum aos moradores da casa, ao menos. Um gato como este, com andar, miado e aparência similares, mas que não queira sair tão cedo, não faça a sua dona se levantar da cama para abrir a porta da varanda, antes mesmo de estar um pouco desperta.
  Um felino doméstico que não se irrite com os outros animais do prédio, que não corra atrás de baratas, escorpiões, pombas e nem traga aranhas presas no bigode quando sair, perscrutando muros desconhecidos.
  Um gato amarelo de um universo vizinho que não seja tão arisco, mas seja dócil e fique mais tempo no colo humano e que se abandone, completamente entregue, ao amor de estranhos.

  Num universo paralelo a este que me aprisiona, deve haver um apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro cujo aluguel não seja tão caro. Que as cortinas durem mais tempo limpas e que os azulejos da cozinha soltem, no máximo, uma vez a cada dez anos e não a cada dois. Um apartamento numa  rua periférica ao bairro burguês, que tenha mais pernas do que carros, mais árvores do que lixo, mais crianças do que pernilongos.
  Um apartamento com plantas na varanda, cujas mudas estejam sempre disponíveis aos transeuntes que gostarem de jardinagem. Um apartamento igual a este, arejado, iluminado e tranquilo, mas cujo endereço não seja encontrado quando a dona quiser desaparecer um pouco.
  Deve existir, neste lugar de dimensão outra, um apartamento sempre de portas e janelas abertas, sem insegurança ou medo. Um apartamento com reuniões de condomínio mais afetuosas, moradas abastadas de solidariedade e afeto.

  Deve existir, num mundo similar a este, mas outro, o mesmo casal da casa ao lado; tão inusitado e alegre de anos atrás. Um casal cuja história não foi submersa pelas mágoas e ressentimentos guardados num canto da sala e que rebentaram numa noite de segunda-feira. Um casal cuja uma das partes não passou a ter arrepios ao ouvir as reclamações da outra e que a cada dia recém-nascido não se olhem com mais desdém. Um casal que não escolha discutir enquanto o filho está na casa da avó e nem disputem a atenção dele, quando ele chegar.
  No universo paralelo o casal ainda sorri, leva o cão para passear, ensina o filho a fazer a lição de casa e faz planos para as férias. Ou, neste mundo que não conheço, mas gostaria, o casal se afasta sem levantar suas espadas. Deve existir um mundo em que a família toda não seja refém da angústia do fim. Mas o receba com flores e copo d'àgua, para tirar da boca o gosto amargo das infelicidades insistidas.

  Num mundo paralelo, em outra dimensão talvez, deve haver um país do mesmo tamanho e bem parecido com este no qual eu resisto, mas desenhado em folha de esperança, justiça e equidade. Um país que não precisa de exércitos armados, que não assassina seus jovens negros, não condena suas crianças a um destino sem sonhos, nem tem suas mulheres mortas pelas mãos do machismo. Um país em que amar seja absolutamente comemorado e livre; que ninguém se esconda para amar a quem quiser.
  Deve haver um país que não queime seus livros, não apague seus heróis e heroínas nem invente sanguinários mitos. Um país que não desacredite na cultura, na arte e na ciência que ele mesmo produz. Deve existir um país em que a alegria do carnaval dure bem mais do que uma semana ou um mês.
  
  Num mundo outro, parecido com este, deve haver religiões que consolem muito mais do que julguem; que acolham muito mais do que expulsem. Ritos, orações, hinos, mantras, mentalizações que não segreguem, mas religuem as humanidades às divindades e também o humano com outros dele.
  Deve existir religiosos que não ecoem a voz da intolerância, ao contrário, que gritem a favor dos perseguidos. Religiões que não concebam o ódio, que não calem ainda mais os oprimidos. Deve haver uma religião que queira nos salvar sem cobrar nada em troca; nada. Nem fidelidade aos seus preceitos muito rígidos. Que fale do amor ao amor; que ouça o amor do amor; que ensine o amor a amar.    

  Neste outro mundo desejado deve haver, em algum lugar, alguém que me chame sem desespero, mesmo que não saiba ainda o meu nome, que me espere sem me perguntar de onde venho, que me receba sem hora marcada. Deve haver o meu coração no mesmo peito, mas em outra, que aprenda a bater sem doer tanto. Deve existir um alguém que encoste a cabeça no meu peito e não se assuste com a potência do meu ritmo cardíaco.
  Deve haver, neste outro mundo, alguém com coragem que não queira me ferir para me testar, que não abandone o remo nas minhas mãos ou o barco e me deixe só, porque a tempestade se aproxima. Alguém que resista às águas turbulentas e à imprevisibilidade dos dias.

  Num outro mundo, invisível, deve existir uma mulher tão pálida quanto esta do reflexo da tela do computador no qual escrevo agora. Com os olhos verdes de folha esmaecida, fios brilhando na fronte larga e unhas vermelhas que nunca descasquem.
  Uma mulher cujas palavras sejam lentamente degustadas e os escritos durem mais do que os seus sonhos perenes. Uma mulher que espera por alguém à porta, cujo nome ela tem guardado na boca. Basta que apareça no corredor e ela vai saber como chamar.
  Num mundo paralelo a este, deve existir uma mulher que espere pelo gato amarelo e que juntos sejam mais um do outro do que os pares desfeitos neste mundo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas dos Absurdos, 18 de fevereiro deste pavoroso 2019

Querida Amanda
Doutora em Letras e Conteúdos Prismáticos

Eu não ia passar aqui hoje, se passasse não comentaria, se comentasse eu teria que falar destas coisas do universo e do multiverso. talvez por que estes feminicídios extrapolam a minha consciencia lógica. Caramba, ando procurando fatos que movam minha fé ao etéreo.

Bem, por favor, não me deixe divagar, censure, não publique, estou com muita raiva de tudo isto que está aí e não quero contaminar o seu gato.

Assim disse o guru da física quântiva, física pós-moderna, ou qualquer termo que valha, o falecido e excelente Dr. Steven Hawking : “Não estamos em um Universo singular e único, mas nossas descobertas implicam em uma redução significante do multiverso, para uma variedade muito menor de possíveis Universos”.

Ele não falou que não existem, afirmou que existem em menor quantidade que se supunha existir. Se há este multiverso, por que o reverso é aqui? Hoje publiquei no meu discreto espaço La vie en rose, um cântico dos cânticos do amor visto pelo seu lado, o lado feminino, aí uns misóginos bombados agridem, matam, trucidam, torturam, dilaceram a mulher. Motivos? Vários criados pela cultura apocalíptica, mas nenhum justifica a violência.

Este solo está fadado a tragédia? Não, ainda está vivendo episódios da alta idade média do velho continente. deve ser este o universo paralelo da insanidade nacional. Pronto, muito bom seu texto, e gatos, ora ora ora, gatos são gatos.

Um abraço e paz!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 20 de fevereiro deste 2019 doloroso (acho que já sabíamos que não seria fácil, mas estar nele...é ainda mais duro)

Querido Paulo,
leitor, amigo, comentarista das coisas da vida

Abriram as portas do pior em nós: LGBTfobia, misoginia, racismo e por aí vai...
O patriarcado branco, heteronormativo, escravagista, fascista e elitista está com medo! E tanto medo, que não aceita o mínimo de equidade. É perturbador ver toda essa violência emergir, mas acho também que aprenderemos...(ao menos, espero).

Meu caro, jamais o censuraria. Sua presença aqui é tão generosa e luminosa... sua voz é uma esperança e alento.

Tenho acompanhado o seu Reino... chorei com La vie en rose...porque amo a Edith, amo esta letra e este é um motivo para seguirmos: a beleza da arte. Obrigada por cada partilha no seu Reino ou aqui.

Abraços com gratidão pelas suas vinda e também pela sua voz.