
Nos últimos meses tenho ouvido os silêncios que não cortam, mas afastam. Tenho deixado de segurar por mais tempo as mãos quentes dos afetos antigos e me aproximado do improvável. Tenho deixado de abrir a janela durante a madrugada para não acordar a vizinha com o seu sono frágil e, por isso, a lua tem deixado de se deitar no meu travesseiro nas noites quentes.
Agora, tenho frequentado com menos medo as margens dos precipícios, tenho plantado flores à beira dos abismos, tenho colhido dentes-de-leão sob ventanias.
Como o que não dói, mas também não salva. Como o que promete, mas nunca vira a esquina. Tenho ouvido mantras que acalmam o meu prana, mas desinquietam os outros moradores da casa; tenho repetido frases para que elas se fixem em mim, mas elas se descolam a cada vez que eu tomo um banho; tenho feito promessas que não saberei cumprir, tenho sonhado com um fusca brilhante, uma mulher vestida de renda, esperando um ônibus e um semáforo apagado. Dos três sonhos o semáforo é o que menos me angustia.
Tenho que comprar um fone novo. Tenho que deixar de esfregar, tanto, a pele durante o banho. Tenho que resistir à vontade de fazer os olhos de alguém brilhar com uma mentira. Tenho que aprender a dirigir e parar de frequentar pontos de ônibus.
Como quem em um dia é imprescindível e no outro é um completo estranho. Como um casal que faz bodas, mas não se beija mais. Como um cão que é deixado pela família sem água e comida um final de semana inteiro. Tenho morrido mais vezes, mas renascido em bem menos tempo.
Tenho acreditado mais, mas me levantado mais cedo a cada cena canastrona do teatro. Tenho oferecido mais vezes as minhas vulnerabilidades, mas tenho passado a ferro cada ruga deixada pelas mãos insensíveis.
Tenho me sentido mais segura perto de palavras que não faziam parte do meu vocabulário. Mais disposta em um cotidiano inventado do que no acostumado, abandonado. Mais livre das invenções de amor, dentro de um poema de Sylvia Plath. Mais corajosa, pisando em cima das mentiras nas quais os homens acreditam e contam.
Como quem se alegra com o sorriso que não é o próprio nem oferecido para si. Como quem se acalma com a chuva e não se desespera com a falta de luz. Como quem não sabe explicar ao motorista como chegar à própria casa, porque conhece o caminho com os pés. Como quem prefere os dragões que cospem fogo aos cavaleiros esnobes de armadura .
Tenho me enganado mais vezes com os olhares profundos, mas tenho me absolvido dos equívocos da entrega. Tenho estudado menos e aprendido mais; tenho cantado mais música brasileira e ouvido o canto dos pássaros da rua de baixo, quando volto para casa depois do trabalho.
Como o que se rasga, sem garantias de fita adesiva na gaveta. Como o que busca, sem nenhuma certeza de que exista. Como quem se lança em queda livre e o paraquedas demora muito a abrir. Como o que não sabe o nome, mas precisa chamar. Como o que não sabe chamar, mas tem o nome na boca. Como o que se deita tarde demais para sonhar. Tenho feito concessões e me arrependido; tenho me deixado magoar mais vezes e perdoado todas, mesmo que não peçam desculpas.
Tenho sentido uma dor no peito e o médico diz que não é nada. Tenho esperado pelas consultas, bebendo toda a água gelada, de que sou capaz, do consultório, chupado as balas do pote da recepção e lido todas as revistas ruins que deixam em cima da mesa de centro.
Como o que nunca envelhece, porque foi embora sem despedida. Como o que não morre, mas não deixa viver. Como o que não tem grades, mas não liberta. Como quem não sabe amar e quer muito ser amado.
Tenho atravessado, com muito medo no início, a corda bamba sem olhar para o chão ou para o fim, só sentindo a paisagem que me respira. Tenho conversado com estranhos e revelado mais nas filas do que nos jantares de noite inteira. Tenho perdido o sono porque ninguém está seguro no outro, mas também não está em si. Tenho quebrado promessas e juntado os cacos com pá e vassoura. Tenho lavado copos de madrugada para a pia da cozinha estar limpa pela manhã.
Como quem não ama mais o rio verde, o barco azul e uma barba; solto a mão e deixo a resposta em branco antes de entregar a prova. Não sei. Tudo o que aprendi foi não saber muito.
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