quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

É também desfazer laços

   Tem gritado menos, tem falado com mais suavidade com a mãe e o filho, os únicos íntimos do seu círculo restrito.
  Tem escutado música triste em volume máximo, o que é surpreendente porque eu nunca tinha ouvido música nenhuma saindo da sua casa. Tem atravessado a cidade mais vezes, tem deixado instruções para o filho para recolher a roupa do varal, esquentar seu próprio almoço e levar o cão para passear.
  Tem chegado depois do filho e, por isso, não o espera mais no portão, aflita e amorosa. Tem feito novos amigos, voltou a estudar e, aos quarenta, começou a frequentar bares. 
  Tem falado dele com mais raiva e menos frequência a cada dia. Não atende ao telefone quando ele liga, não está em casa quando ele vem buscar algo esquecido, mas deixa a chave com a mãe para que ele entre, pegue e vá embora.
  Às vezes deixar entrar é também deixar partir mais rápido.

  Tem saído com o cabelo molhado e comprou um batom novo, só usava um marrom. Este agora é meio rubro; bonita. Tem advogada e vai à podóloga. Tem pensado em vender a casa e nas férias escolares ir com o filho à praia.
  Tem chorado enquanto rega as plantas e a horta que ele cultivou até o ano passado; agora sabe ela mesma tirar as ervas daninhas, adubar e  separar mudas para presentear.
  Tem aprendido informática com o filho, política com a mãe e a gritar de coração partido com Marília Mendonça. Tem ensaiado discursos que fará para ele, quando se encontrarem oficialmente para o divórcio. Tem mudado a intensidade e a duração das palavras todos os dias; os primeiros eram longuíssimos e dramáticos, já os mais recentes, são irônicos e curtos.
  Tem recomendado ao filho que estude muito e não aceite menos do que os seus sonhos dizem que ele pode.
  Às vezes sonhar para o outro nos leva ao encontro daquilo que perdemos um dia.

  Não tem falado em novo amor, outro corte de cabelo, uma vida no litoral ou está menos preocupada com a limpeza da casa; ainda grita quando um copo sujo está na pia ou na mesinha de centro, mas está mudada. Mudada como e até onde consegue chegar.
 Está mudada de se arrepender do tempo perdido, numa noite, levantar-se mais cedo na manhã seguinte e não jogar um balde de água na varanda, mas tomar um ônibus para um lugar que ainda não conhece na cidade onde nasceu. Está mudada de não ser a única a ficar em casa e esperar. Está mudada de sair antes de todos os outros. Segurança é também soltar o bote, às vezes.

  Tem procurado saber mais dos preços do supermercado, tem achado tudo muito caro, tem gastado e economizado o próprio dinheiro. Tem assistido ao telejornal, não assiste mais aos programas de auditório dos domingos.
  Tem falado nela mesma em terceira pessoa, do singular, não no plural. Tem falado ela, ela, ela, quando se refere ao passado e no presente eu, eu, eu e, às vezes, nós, quando fala sobre ela, o filho e a mãe. Humaníssima trindade pós-moderna: duas mães e um filho para ser guiado.
  Tem menos raiva no seu tempero, tem menos mágoas no seu choro, tem menos palavras nos seus discursos ensaiados, tem menos culpa nas suas saídas longas.
  Às vezes seguir é também desistir de um livro sem chegar às últimas páginas. É só saber que não é ele mais, então não lê.

  Tem contado os seus sonhos, na cozinha, enquanto passa o café. Diz que tem dormido melhor com mais espaço para o corpo e mente - isso são palavras dela, antes das sete.
  Tem desejado sair para dançar, tem um encontro na sexta-feira antes do carnaval e não sabe que roupa usar. Tem perguntado à vizinha sobre os blocos de pré-carnaval.
  Não tem se importado em falar o nome dele, mas ainda usa "o seu pai", quando fala com o filho; mas com menos desprezo no tom.
  Ás vezes assistir alguém ir é um caminho de liberdade desvendado, em um lance só, depois de muito esforço. É também sentir alívio quando a porta se fecha atrás do seu último passo.

  Soube que ele quer ir para outra cidade; ela não. Não tem a opção de esquecer noutro lugar. Até a cama, a cômoda, os espelhos e os cinzeiros são os mesmos. Ele levou a mesa de jantar, o sofá, uma TV e a cama de solteiro, ela ficou com a música, o filho, o coador de pano, a mãe e um casal de coelhos de porcelana sobre a estante. Não pediram ao juiz, ainda, uma divisão imparcial e justa. Não há justiça que caiba nesses finais.Tampouco todos viveram felizes para sempre, depois de virarem a página.
 Crescer acontece em qualquer tempo. Às vezes mais nos desembaraços dos cordões, nos laços desfeitos, do que naqueles que foram dados um dia. Crescer é também deixar ir.

  Amar é também desfazer laços. Ás vezes é preciso falar muito, chorar muito, sonhar muito, gritar muito alto antes de aprender que a intensidade da dor também é passagem.  
  Liberdade talvez seja aprender a ouvir música triste e só chorar; sem raiva, sem culpa, sem se sentir covarde. É também comprar um pão doce e comê-lo com margarina, assistindo a uma novela na TV, sem esperar por ninguém, por hora seguinte alguma. Então o filho chega, a mãe sobe as escadas e os três comem o pão; dulcíssima tarde, redentora refeição.



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