quinta-feira, 21 de março de 2019

O que eu gosto no amor são os planos, que sempre podem ser outros

   Contou-me de uma mãe franzina, no supermercado, com três crianças pequenas muito suadas; a menor no colo e as outras duas no chão, uma resmungando e a outra, silenciosa, com o braço engessado e olhar distante. Uma sacola com uma caixa de leite nas mãos da criança que tinha parado de resmungar, mas suspirava de cansaço, agora, e a mãe contando moedas na fila do caixa. Só disse isso e mais nada. Não precisava de mais.
  Paramos nossas xícaras no ar, cotovelo na mesa e antebraço em noventa graus,  ficamos os dois pensando nas três crianças, na mãe, no braço engessado, no olhar distante, no suspiro e nas moedas na fila do caixa. O café esfriou e o gosto muito amargo não vinha da xícara. Olhei para ele, depois da imagem descrita e o amei mais um pouco.
 O que eu gosto do amor são essas imagens partilhadas, sem necessidade de narrativas. O que eu gosto é também quase chorar, como o outro quase chorou enquanto assistia. O que eu gosto do amor é dividir sem saber o quê, ao certo.

  Lembrou-se de uma noite de natal, quando era bem pequeno, e que não ganhou presentes como as outras crianças. Pulverizou esta no meio de outras memórias, mas o desconsolo infantil era um pequeno cristal na estante da sua infância; eu não me esqueço mais dele, que empoeirado, continua no mesmo lugar há anos.
  O que eu gosto do amor é frequentar infâncias que não são minhas, mas que passam a existir em mim, quando eu escuto os soluços que ainda não cessaram. O que eu gosto do amor é querer consolar uma mágoa, cuja data de validade há muito expirou e me sentar no batente da porta com a tristeza que não é minha, abraçar e falar baixinho:
  - Não vai ser sempre assim.
  O que eu gosto do amor é relembrar antigas canções de infância, desenhos animados, episódios de uma série japonesa e viajar para o tempo em que não se pensava no tempo como agora.

  Esperou-me com um prato quente e um beijo fresco. Não reclamou do trabalho, da política, dos vizinhos, nem dos desastres sociais que se esparramam como batatas nos sacos de linhagem. Estendeu a toalha na mesa, trouxe guardanapos, serviu o refrigerante e nenhum discurso canalha nos irritou no telejornal.
  O que eu gosto do amor é a fatia da pizza com mais queijo que ele separa para mim, porque ainda que seja a preferida dele também, sabe que eu  gosto e quer que eu sinta o prazer do paladar junto com os outros tantos. O que eu gosto do amor é o contentamento com a alegria do par, que passa a ser nossa também. O que eu gosto do amor é a ilha de apaziguamento e afeto em que naufragamos, rodeados de incertezas por todos os lados.

  Espantou-se com a possibilidade do meu ventre alargar-se. De meses de espera, nome preferido, sonoro e com significado bonito. Teve receio pelo plano de saúde, pela insegurança profissional, pela hipertensão familiar, educação e o time de futebol que um rebento iria preferir; mas lamentou muito quando não precisou mais temer por nada disso.
  O que eu gosto do amor é fazer novos planos a cada final de curva vencido. É mudar rotas, voltar metros, esquecer das placas e gargalharmos por estarmos perdidos. O que eu gosto do amor é ele querer e não querer e não querendo, torcer muito para ter.

  Apresentou-me uma música que eu nunca tinha ouvido, mas da qual gostei; talvez da  letra e mais, dos motivos que o levaram até ela. E era dele e depois, minha. Ou será que eu quis que fosse? Ou quero que seja?
  O que eu gosto do amor são as afinidades que se procuram e que afastam, ao menos temporariamente, as diferenças, que nem sempre podem ficar por muito tempo no porão. Mas que quando saem podem só causar um discreto espirro ou uma crise de rinite incapacitante, que nos levará ao afastamento para melhor saúde. O que eu gosto do amor é vontade de se reconhecer no olhar do outro, mais do que no espelho do banheiro. O que eu gosto do amor é o ecletismo, a bricolagem, não por conveniência, mas por muita vontade.

  O que eu gosto do amor é a caneta que ele me dá para que eu escreva, o tempo que frequentamos juntos, mas também separados, o silêncio, as conversas na cozinha, as lembranças espalhadas em porta-retratos, a descrição de uma cena do supermercado, a luta e até, a desistência, se ir embora for libertar. 
O que eu gosto do amor é essa ausência da necessidade de ter estado sempre lá só para dizer que conhece. É  ter o passado na primeira gaveta do criado, o presente aos pés da cama e o futuro em todo lugar da casa. O que eu gosto do amor é nunca saber quanto tempo ele ficará e sempre achar que o depois é para sempre e que o nunca mais não passará pela nossa porta.

  O que eu gosto do amor são as músicas que cantarolamos enquanto eu lavo e ele seca a louça, de madrugada, para não fazermos nada na manhã seguinte; só o amor mesmo, sem receita. O que eu gosto do amor é gestar o que não nasce e trazer à vida, o que eu nem sabia que carregava no ventre. O que eu gosto do amor é saber quase nada sobre ele e, mesmo assim, achar que o tenho inteiro em mim.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Restritas, 06 destes abril do anos 2019

Prezada Amanda
MD contista das causas idílicas

Aqui, neste texto, aprende-se o graal da sublima virtude - amor real, de verdade, não é um sentimento, mas, sim, uma decisão consciente.

E há um aspecto na crônica, no remover das vicissitudes da vida, que não passa despercebido - não há medo quando há amor. Não é o ódio que é o inimigo, é o medo. Perde-se a capacidade de amar pelo medo,

Mas você busca nos cristais da infância, que forma delicada de expor a dor, o ponto de mutação, o ponto de ressignificação, do dia em que o medo anulou o amor. Muito bom ler Amanda!

Hoje e sempre, um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas libertas quae sera tamem, deste 07 de abril de 2019 (Domingo que queria preguiçoso, mas que roga produção)

Caro Paulo,
é sempre bom tê-lo aqui...como leitor também, mas especialmente como coautor...aprendo tanto!
Tenho achado mesmo que o medo é o oposto mais apropriado ao amor...o medo interroga o amor e o interrogando, afasta-o, mata qualquer possibilidade de germinação.

É isto...concordo absolutamente com as suas sensatas palavras...Mas e agora, fazer o quê, se o medo anda por aí dizimando os frutos? Salve-nos a arte, a literatura e a coragem de amar.

Abraços,
Ótima semana!
Amanda