sábado, 9 de março de 2019

Uma mulher é um elefante no meio da sala

  Uma mulher que gargalha de uma piada que não seja feita por eles ou que, por um acaso, sejam eles o mote para a galhofa, incomoda. Uma mulher que chora por outros motivos que não sejam eles, também incomoda. Uma mulher que sorri livre ou se descontrola em lágrimas, não agrada.
  Uma mulher que anda descalça  no final da tarde pela areia de uma orla ao pôr do sol, é solitária e triste. Uma mulher que se equilibra em cima de saltos altos pelos paralelepípedos do Centro, no final da noite, é exibida e sem juízo. Uma mulher que anda o seu próprio caminho, por escolha, chamamento ou  necessidade é provocação.

  Uma mulher com o olho roxo na delegacia é explicação detalhada de que não provocou, de que achou que ele mudaria, de que não gosta não, por favor, de apanhar. Uma mulher com olhos vermelhos em casa é culpa da cebola. Uma mulher que grita ou que silencia está errada.
  Uma mulher de saia curta, incomoda, se são os outros a espiarem as suas pernas. Uma mulher com a saia muito comprida também desagrada, pelo pudor em excesso. Nem muito visíveis, tampouco ocultadas, as mercadorias têm o jeito certo na vitrine.
  Uma mulher que atravessa o oceano sozinha é livre demais para ser amada. Uma mulher que não conhece os limites da sua cidade é desinteressante demais para encantar. Uma mulher que abre portas, fecha janelas, destranca os cadeados e encosta o portão não é acessível para o amor.

  Uma mulher que fale sobre algum assunto que ele não domina, é antipática. Uma mulher que fale sobre alguma temática sobre a qual ela não conhece com profundidade, é burra. Uma mulher não deve falar se não for perguntada por eles; há de se ter elegância na resposta. Uma mulher é uma mulher.
  Uma mulher que reclama é uma infeliz, estraga prazer. Uma mulher que tece recorrentes elogios é uma tola, sem consciência crítica. Uma mulher que não toma partido é uma alienada, escorregadia.
  Uma mulher que pinta os cabelos é uma vaidosa, narcisista. Uma mulher que escolhe não pintar é desleixada e pouco feminina. Uma mulher tem sempre o cabelo errado; natural ou produzido.
  Uma mulher que grita é louca; uma mulher que nunca mais fala é louca; uma mulher que goza é louca; uma mulher frígida é louca; uma mulher que se cansa de ser mulher é louca. Por qualquer motivo uma mulher é louca.

  Uma  mulher que não volta para casa antes da meia-noite e não atende ao celular pode estar morta. Uma mulher que não atende a porta também pode estar. Uma mulher é o alvo mais fácil de um filme de faroeste; sempre prendem-na nos trilhos do trem, até a chegada do mocinho.
  Uma mulher apontando uma arma é uma bandida fria, sem coração. Uma mulher com uma arma na cabeça é uma idiota que escolheu mal. Uma mulher não pode viver em um mundo com armas, é sempre uma relação perigosa .
  Para a empresa, uma mulher com dois filhos é uma mulher e os dois filhos. Um homem com dois filhos é um homem. Os filhos nunca se afastam do útero; os filhos esperados, gerados, criados  deixam rastros para sempre visíveis.

  Uma mulher que tropeça é culpada pela pedra no caminho. Uma mulher que carrega pedras é culpada por não deixá-las no chão.
- Depois não vá reclamar de dor nas costas!
  Mas o mundo gira porque as mulheres sempre carregaram pedras. Uma mulher que transporta ou topa com o dedo em pedras, é sempre culpada. Mas uma mulher nunca fez o poema da pedra no caminho.
  Uma mulher que tenha uma dor é uma pobre traumatizada, apegada ao negativismo. Uma mulher que finge não ter dores é uma alma superficial. Uma mulher tem sempre muitas dores e ninguém, senão ela, sabe quais são e quando a visitam com mais barulho.

  Uma mulher que é eleita chefe da nação, que dê ordens ou não aceite concessões, é inaceitável. Uma mulher que não tem uma conta bancária é uma acomodada sem ambições.
  Uma mulher que escreve, é uma mulher que escreve como mulher; uma mulher que escreve é só uma mulher que escreve o que uma mulher consegue escrever.
   Uma mulher é um elefante no meio da sala de visitas; não há como escondê-la. Uma mulher não cabe mais dentro de uma gaveta da estante. O que fazer com uma mulher que não se pode mais esconder?


4 comentários:

CCF disse...

Muito bom, gostei!
~CC~

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, meio março de 2019

Amanda Machado
Tradutora, intérprete e personagem da Mulher em si e em céu, sol, enfim, onde estiver e onde quiser.

Os tempos não estão fáceis, mas há as mulheres para traduzi-los. Serei breve (espero). "O que fazer com uma mulher que não se pode mais esconder?".

Estou aqui preparando material para um seminário. Fui convidado para falar para moças de uma igreja de cunho calvinista. E deparei com seu texto. Há algo maior que Freud e Lacan neste discurso, e psicanalista eu fosse tangenciaria por aí. Mas tenho o sentimento ficaria muito tosco (no sentido da previsibilidade), pois aqui acima é e há uma mulher indagando a si e ao outro - o que fazer?

Quem é este outro? Ela quer a resposta ou quer que a pergunta seja a resposta?

Como estou recorrendo a princípios do teólogo e filósofo existencialista dinamarques Søren Kierkegaard para preparar o conteúdo da parte à qual fui convidado, como referência do processo humano, e Kierkegaard tinha um segredo, pois todas as suas obras eram dedicadas a uma mulher que amou profundamente, mesmo após o rompimento do romance e o casamento dela com outra pessoa. Este é um dos seus aforismos:

“Ser-se mulher é algo de tão peculiar, de tão misto, de tão compósito, que nenhum predicado pode por si só exprimi-lo, e os muitos predicados, caso os quiséssemos utilizar, contradir-se-iam mutuamente de tal maneira que só uma mulher seria capaz de suportar tal coisa; aliás, pior ainda, seria capaz de encontrar prazer nisso.”

Volto aos limites do meu saber: "O que fazer com uma mulher que não se pode mais esconder?

A prosa passa na marem da dor, da percepção da dor. Onde isto? Aqui:

"Mas o mundo gira porque as mulheres sempre carregaram pedras. Uma mulher que transporta ou topa com o dedo em pedras, é sempre culpada. Mas uma mulher nunca fez o poema da pedra no caminho."

Preciso entrar na Teologia, sem ser chato:

Jesus, quando ensinava no Templo, é apresentado a uma mulher que havia sido descoberta cometendo adultério. Lembram a ele que a Lei diz que tal mulher deveria ser morta, apedrejada e perguntam o que ele pensa. Não responde e começa a escrever com o dedo na terra. Voltam a questionar e ele diz: quem não tem pecado atire a primeira pedra. Todos vão embora e Jesus diz à mulher: "eu também não te condeno. Vai e não peques mais".

Eu acredito que Jesus escreveu na areia, com o dedo, uma nova lei, exclusiva, que só consegue ser lida e interpretada pelas mulheres. O que está escrito ali é o Graal da feminina existência para nós outros, incapazes de doar energia às gerações futuras (pelas mitocôndrias - exclusividade feminina).

Nós outros, incapazes de gerar e repassar sentimentos perenes a uma micro-vida de fração de milímetro recentemente formada.

Um abraço

Paulo Abreu





Amanda Machado disse...

Muito obrigada C.C...
Abraços,

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 13 de março de um 2019 que já inacreditável

Querido Paulo,
suas cartas trazem humanidade e respostas (com muitas perguntas também) a este blog. É bom lê-lo, é muito bom ouvir vozes que dialogam com a minha, perspectivas outras que tantas vezes se esbarram na minha janela. É bom não ouvir somente o próprio eco, ajuda muito ir um pouco mais além...

Sobre as pedras, que você destacou, lembrei de uma entrevista ou artigo em que a poeta Adrienne Rich diz: "As mulheres têm sido o verdadeiro povo ativo em todas as culturas, sem as quais a sociedade humana há muito tempo teria perecido, embora a nossa atividade tenha sido mais frequentemente em favor dos homens e das crianças".
É isto...também.

PS: fiquei curiosíssima pelo seminário... certamente será um sucesso! Abraços,
Amanda