sábado, 6 de abril de 2019

Sinto falta do último parágrafo e da sensação de estar no mundo por um segundo

   Lista de compras, compromissos no quadrado pequeno do calendário em cima da mesa, frases soltas nos versos dos extratos de banco, questionários no quadro negro para crianças de dez anos que reclamam de terem tarefa na sexta-feira, palavras ácidas de madrugada no aplicativo de mensagens e de desculpas pela manhã. Arrependimento e insônia. Flechas ordinárias com venenos na ponta, que ferem quem atira e seu o alvo, em um tiro só.
  Sonhar com a escrita, sentir saudades de frases saídas de um lugar que não seja a mão direita. Acordar com a angústia de uma perda que é progressiva, que também pode ser reversível, mas que no momento, não há o que fazer. Abanar um lenço, enquanto derrama lágrimas assistindo ao navio se afastar do porto. Talvez volte, talvez jamais.

  Um cartão de aniversário, a dedicatória de um livro, um e-mail de confirmação de presença, um parágrafo do meu trabalho de final de curso, uma frase atrás de uma nota fiscal que perderei sem encaixar em texto algum. Vai voar pela avenida, caída de um livro didático, vai ser arrastada pelos pneus dos carros, vai ser pisada, molhada, rasgada e, ainda assim, sobreviverá sem mim e sem as outras frases que a fariam menos só.
  O pedido de um material, o horário para utilizar anfiteatro, o endereço do dentista e o da loja que conserta secadores de cabelo; todos escritos num só dia.
  Ando a distrair-me da constatação da saudade. Ninguém percebe - ou fingem não perceber - mas estou apátrida. Não perdi um lugar ainda, estou andando à margem desse lugar. Pode ser que eu caia do lado de dentro ou, quem sabe, eu me afaste mais a cada dia?

   O recado anotado do telefonema que não é para mim, o nome de um remédio, de uma doença para pesquisar mais tarde, antes de dormir; a marca de um xampu que promete cabelos mais fortes; ao menos os cabelos podem resistir aos tempos difíceis, o nome de um país fictício para um Romance ainda não escrito, de um filho que não sei se chegará, de um cão que talvez eu encontre perdido algum dia.
  Uma lista de desejos bem curta, uma de deveres mais longa e outra de intenções que nunca acaba. Tenho organizado o máximo de palavras, o quanto possível, mas toda segunda-feira pareço cair no buraco de Alice; sozinha e muda.

  O nome de um autor, de um livro, de um amor que talvez chegue, corresponda ou que talvez nem exista, que eu criei para o Romance e o quis para mim. O título para uma crônica que a chuva levou, enquanto eu abria o guarda-chuva; o nome de um livro que talvez nunca chegue a nascer, como o filho, o cão e o amor.
   Estou cercada de papéis por todos os lados, sou uma ilha ecologicamente incorreta. Estou rodeada por palavras que voam antes que eu consiga encontrar um lugar vazio no ônibus, abrir os dois zíperes da bolsa e pegar a caderneta de anotações. Estou em combustão constante, me queimam as mãos, as tripas e a garganta, mas escrever o que não me pedem tem sido o ônibus que eu perco porque estou atrasada ou que desisto de esperar porque cheguei ao ponto muito antes do horário.  

   O aniversário de alguém, o dia que eu troquei o gás, os vinte reais que eu devo na padaria, o nome do filme que eu quero assistir no final de semana, os telefones do quiroprata e da podólogo. O placar do jogo para atualizar meu pai sobre o campeonato; o nome do chá para comprar para minha mãe.
  Não me faltam as palavras, nem a caneta ou as folhas de papel. As palavras me atravessam em excesso em qualquer lugar e horário. Duas da manhã, meio-dia, no banheiro do shopping, na cozinha da casa de uma amiga, na faixa de pedestre e  sinal quase mudando; não é por falta delas. É a falta de mim.

  Sem cartas de amor ridículas ou não, sem poemas escritos na mesa do café do Centro, sem os pedidos de desculpas pela madrugada anterior, em envelope estampado com flores. Sem epitáfios ou epígrafes, sem ideias para uma peça de teatro para um grupo amador, sem resoluções para a nova idade.
 Tenho consumido as letras do alfabeto, mas sei menos a cada dia sobre o que eu quis dizer. Tenho me calado demasiado. Ser feliz é trabalhoso; nunca é só uma coisa, é ter um sonho realizado e não ter para quem contar, é ter alguém sempre disposto a ouvir e nenhuma realização para partilhar. Amar só é simples quando não estamos no amor; escrever dói, mas não escrever é aterrador.

  Ainda espero alguém que me leia, só por isso não desisto e continuo a escrever nos versos dos extratos de banco, quem sabe assim a escrita ainda tenha algum valor?
  Eu vivo no porto, abanando o lenço para os navios. Sinto falta do último parágrafo de um texto - a sensação de colocar, no mundo, o que é dele - sinto falta de, por alguns segundos, ter um lugar no mundo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 20 de abril de 2019

Querida Amanda,
Senhora das palavras transformadoras

É verdade que no meu reino tenho experimentado a ausência. Motivo há e não há. É uma fase.

Da sua crônica de hoje, de sobressalto, recordei de uma história contada aos sussurros sobre o Lô Borges. Reza a lenda que Lô amava Joyce Moreno (apaixonante Joyce, já assisti a um show inenarrável https://www.joycemoreno.com/).

Amor que era correspondido, até que Lô descobre que seu amigo Nelson Ângelo também amava Joyce e era correspondido. Era um triângulo onde os catetos não se cruzam. Coisa mais humana que isto desconheço.

Lô perdeu Joyce e rompeu com Nelson Ângelo a amizade. Este rompimento durou mais de 40 anos. Regressaram à amizade recentemente, o suficiente para que palavras guardadas neste quase meio século ressurgissem.

"Não quero descanso ainda / ... / Não tem sentido parar / Só falta mais um pedaço", escreve na composição com o antigo/novo parceiro, que está no novo album nos versos de "Flecha certeira" (https://www.youtube.com/watch?v=RqzooEjYqbQ)

Lô Borges é o imortal parceiro do fantástico "Clube da esquina" de 1972, de Milton Nascimento, que hoje reside em Juiz de Fora. Nos idos de 1980, estudava no CAVE e o porteiro, sr. Anísio, era irmão da mãe biológica de Bituca. Figuraça o sr. Anísio, pessoa da mais profunda empatia. Acredito que este elo é o porto onde atracou Milton.

Uma história gerando uma história, gerando outra história ... é o Vetor Amanda a ordenar nossas palavras (e memórias) soltas em alinhamento.

Um abraço, Amanda

Feliz Páscoa.

Paulo Abreu

https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2019/04/14/aos-67-anos-lo-borges-segue-o-curso-natural-da-musica-do-artista-no-album-rio-da-lua.ghtml

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 25 de abril de 2019

Querido Paulo,
CantaAutor das histórias da alma

Não é inédito meu contentamento com as suas visitas, que são sempre cheias de boas surpresas! Mas essa história...(essas, porque uma desencadeia outra e outra) é fabulosa. Adoro o Lô! Muito mesmo! Composições, voz e a calmaria da presença. Agradeço a cada citação e link...verei todos e certamente amarei.

A páscoa se foi (ao menos a comemoração cristã), mas desejo uma passagem auspiciosa para você, Paulo.
Abraços,
Amanda