sexta-feira, 8 de março de 2019

O tudo ainda é pouco para o tamanho do meu desejo

  Terça de carnaval e eu não visto a fantasia. Estou apartada dos blocos, das escolas, dos repiques, tamborins e apitos, das avenidas cobertas de confetes, do cheiro de cerveja. Terça de silêncio, de um quase deserto; um pouco escolhido. Em alguma casa repete exaustivamente um samba antigo e melancólico. Ninguém reclama da altura. Porque não há ninguém. Só há desertos nessa rua na terça-feira de festa pagã.
  Da janela, a cidade é  calma, lenta e doce. Paira uma alma gentil de paciência e acolhimento. Hoje a cidade é de quem não foi à festa; e quem não foi, é recompensado com a paz do esquecimento. Nem suor, nem copos, nem brindes, nem gritos, nem desvios, esbarrões, mas também não tem abraços, risos e alegria em goles demorados.
  Somos eu, o gato da casa da frente e a voz do samba triste; ninguém mais esperando na porta da festa.

  Do outro lado da rua, no prédio de três andares, uma cortina branca cresce lentamente, adquire volume e rompe os limites da janela, como um balão demasiado inchado.
  A janela parece menor a cada espasmo da cortina balouçante.  Ela é um corpo de tecido desgovernado, tentando se soltar dos trilhos.
  Em segundos, os movimentos que eram suaves ganham potência e a força dos ventos apressa o voo; faz barulho, abafa o samba nostálgico, sequestra a paz vazia do meu carnaval abdicado. É intenso e incomunicável o espetáculo. Procuro testemunhas, algum outro rosto tão pálido quanto o meu, tão surpreso, ou quase. Mas ninguém mais parece saber do que acontece logo ali na janela do terceiro andar do prédio de cor estranha.

  A cortina pacífica, logo, ganha contornos de luta. Quer se soltar, o vento a impele para a liberdade, mas tem os trilhos, as roldanas; todo o mecanismo desenvolvido para as cortinas se moverem apenas nos limites da janela.
  O vento diz: se solta, venha, lute pela liberdade. Os trilhos dizem: se aquiete, aceite até onde a segurança pode te deixar ir. E eu não digo nada. Arrepiada, arrebatada e passiva eu só quero mais espetáculo, mais voos, mais danças, mais resistências ou entregas.
  Eu quase sinto o tecido alcançando o meu rosto, antes de ir para sempre. Mas, então, a paz dos sem-carnaval atinge a janela, a cortina branca vai diminuindo lentamente, se recolhendo para o lugar em que cabe mansa. O balão vistoso e branco, murcha, de novo,  até voltar a ser tecido discreto escorregando pelas esquadrias.

  Lamento a desistência da dança e a partida do vento. O samba antigo toca de novo e ninguém chega para contar as notícias do carnaval. Mas o vento volta, de novo. Discreto e delicado, começa a encher a cortina de novo.  Ela incha aos poucos, eu me encorajo lentamente.
  Dente de leão em tecido; quero fazer um pedido. Um ou dois. Talvez, se fizer um com muita força, seja mais prudente do que dois, porque com energias divididas podem se enfraquecer no percurso.
  Cortina branca, véu de noiva. Achava o adereço a coisa mais bonita quando criança. Usei um quando fui noiva de festa junina, quase não dancei para não estragá-lo. Nunca mais quis ser noiva. Nunca mais não quis dançar para poupar o véu banco.
  A cortina se enche e eu sopro meu pedido de uma só vez. Desprende do meu pulmão e gruda na barriga da cortina grávida.

  Cortina branca, balão poderoso; cortina branca cheia de ar, vento puro, cheia de nadas. Cortina ocupada de instantes que ninguém mais vê. Cortina branca de inflável esperança.
  E se como a cortina, afixada nos trilhos de alumínio, sejamos todos prisioneiros de pedidos que a vida não dá conta de entregar? E se os sonhos da gente dançam como a cortina branca, pipa com linha limitada? E se eles precisam ter essa limitação de gozo e pudor de nunca transpor?
  Fiz o pedido e a cortina ainda treme. Queria que um vento passasse e arrastasse tudo: sonho, realização insatisfatória e dúvidas. Porque eu quero tudo. Tudo ainda é pouco para o tamanho do meu desejo.

  Meu desejo é a cortina branca cheia de vazios e que precisa voar. Meu desejo é grandioso de vontade e pequeno de amplitude.
- Por favor, alguma mão liberte a cortina! Por favor, soltem o meu desejo desses trilhos que não levam a lugar algum.
 Meu grito não sai, por isso só eu me ouço. Indomável cortina, tolerante e tediosa nos dias abafados sem vento.

  Ouço o telefone, mas perco a chamada; quase sempre perco quem me busca. Mas eu preciso dizer-lhe sobre o tamanho do meu desejo. Não é tarde para retornar a ligação.
- É que o meu desejo, moço, é balão colorido, ingovernável. Não é branco, não é puro nem pacífico. Meu desejo é de luta, às vezes tão suave que ninguém entende, às vezes tão desacorçoada que grita de madrugada e ninguém mais dorme.
  Desculpe o transtorno, mas é esse o tamanho do me desejo: o tudo ainda é pouco. Preciso buscar o que ainda não existe; tenho que inventar aquilo que me ocupe e me transborde. É só assim que eu sei desejar. Desculpa moço, é que eu sou imensa de vontade.



Nenhum comentário: