terça-feira, 30 de abril de 2019

Luz amarela, sonho partido. Pode ser que chegue ou já tenha sido.

   O semáforo fica amarelo, não chove, mas já não está tão quente; a cidade é morna inteira, eu sou
morna. O banco de trás do carro desconhecido, de repente, é o melhor lugar para eu estar. Solto a bolsa, relaxo  maxilar e ombros pela primeira vez no dia; suspiro. O não-lugar é reconfortante, às vezes. É a passagem, o intervalo, a escada ou a ponte entre dois mundos, o não-lugar é o apaziguamento, é o descanso em meio ao caos.
  Não acabou ainda, mas a guerra é  sempre um enquanto, assim como a paz.
  - Tá boa a música, moça? Ou quer que eu desligue?
  Eu demoro alguns segundos para entender do que ele fala. Ele repente:
  - A música...Tá gostando ou quer que eu desligue?
  - Ah...Não! Tá boa. Tô gostando.
  Eu devia estar mexendo os lábios, acho que eu cantarolava sem saber. A música é antiga e só depois que ele sugere desligar é que eu me apego ainda mais a ela.

  A luz agora é verde, o carro arranca e eu ainda fico lá atrás no amarelo, esperando, descansando, entregue, guardando a voz e ouvindo a vida.
  - Acelera, acelera, para.
  Toda a avenida está ocupada, alguém mais ouve a vida?
  Antes de entrar no carro, eu pensei em aproveitar e  responder às mensagens, planejar o dia seguinte, comer a maçã, ler uma, das trinta páginas do texto, no banco de trás. Mas, agora, eu não faço nada. O banco do carro desconhecido é um portal que me poupa da urgência e do fracasso de estar sempre em dívida.
  - Quando eu descer, eu vou me preparar para o outro lado. Porque uma hora eu atravesso.
  - É o quê? Ele me pergunta.
  - Depois que passar do portão, o prédio é do outro lado do Campus.

  Mais um sinal amarelo para eu sonhar. Continuo morna e faço planos, enquanto suspiro: no último dia da espera, eu vou acordar cedo para aproveitar melhor as horas. Vou colocar a água para ferver, enquanto abro as janelas, depois eu destranco a porta da varanda para o gato sair, espero a água ferver em frente ao fogão e jogo a água, bem de longe no filtro de café, para o cheiro se espalhar pela casa inteira.
  Escovo os dentes e não olho no espelho; será um dia sem julgamentos. Sem juízos e juízes. Serei eu a dar qualquer veredicto para mim. Lavarei o rosto e o secarei na toalha branca e macia. Sairei devagar do banheiro. Estenderei uma toalha na mesa, escolherei minha xícara entre as favoritas, mas tomarei o primeiro gole de café ainda em frente à pia. Minha avó fazia assim, minha mãe também e ambas olhavam longe de uma janela que ainda não existia para mim. Na minha cozinha não tem janela em frente à pia, mas eu olho muito longe, através da parede. Eu agora entendo os olhares viajantes da mulheres da minha família. Era espera.
 
   Para esperar o dia dos instantes finais da travessia, recolherei as roupas secas na varanda, com cheiro de cidade e amanhecer. Ligarei uma música alegre, para espantar o cinza. Tomarei sol na janela da sala, cutucarei o canto das unhas e resolverei, de súbito, esmaltá-las.  Mesmo sabendo que depois vou querer lavar  os tapetes, as cortinas, a roupa de cama, os vestidos, as toalhas, as solas dos sapatos e sandálias.
  Vou levantar disposta do chão da sala, vou tirar a poeira dos livros mais próximos, até chegar na última prateleira da estante. Vou encher de água o borrifador e vou chover, como deusa, em todas as plantas que eu puder alcançar do meu apartamento, as minhas e as do vizinho, que tocam nas minhas, porque são íntimas. Mas nós dois nem sabemos os nomes um do outro.

  No dia antes da chegada ao outro lado, vou respirar profundo, perdoar de novo, costurar os rasgos, cerzir os furos, fazer bainhas no que é demasiado comprido  e pences nas cinturas largas. Vou bordar panos de prato novos, pintar o cabelo e recolher o lixo e as culpas do chão da casa.
  Vou fazer uma comida leve, abrir um vinho, desligar os telefones e da TV, eu nem chegarei perto. Vou tomar dois banhos e dormir duas sestas. Vou sorrir de alguma lembrança e abaixar o som para ficar atenta à campainha.

  Depois do último gole de vinho e da segunda sesta; vou ficar silenciosa e serena. Deitada no sofá, vou olhar para porta, enquanto acaricio o gato; só ele sabe da minha espera. Ele também sabe que os dedos no pelo dele esperam tocar a maçaneta da porta no instante iminente. Não sei se o levo, não sei se caberemos juntos no banco de trás do carro desconhecido.
  Cochilo de novo.
 - Moça, qual é o prédio mesmo? A voz me desperta, sem a campainha aguardada.
   A luz é branca e eu acho uma nota menor na carteira.
  - Pode ficar com o troco.
  - Boa noite, moça.
  - Bom trabalho, moço.

   Luz verde, música conhecida. Pode ser espera infinita ou viagem de ida. Luz vermelha, caminho artificialmente iluminado. Uma parte ainda em mim, a outra desencontrada do todo.
- Acelera, acelera, para.
  Eu ainda ainda escuto a vida, do banco de trás do carro desconhecido. Luz amarela, sonho partido, pode ser que chegue ou nunca tenha sido.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Aflita, 26 de maio de 2019

Querida Amanda

Resido no coração de ferro das Minas, onde jorram tristezas, desesperos, descaso e preconceito. Não há som no ar senão o que é tenso. Esta carta é tensa, o minério ... ora, ora, ora, o minério flui das minas para o bolso da corte, sem derrama. Na frente da minha casa passa um rio, o Rio Piracicaba, condenado à morte se tudo der errado. E morto tudo estará em sua volta.

Bem, no texto hoje, você, candidamente (acho você cândida, e se mais alguém o disse, não plagiei, apenas constatei o óbvio) trás à tona o legado da vida. Qual o legado após a partida? Haverá tempo de despedidas? O sinal? O sinal é um sinal de que a luz se apaga ou de que a luz se acende? Tenho dúvidas quanto a isto.

Gênesis 1 1.No princípio, Deus criou o céu e a terra. 2.A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 3.Deus disse: “Faça-se a luz!”. E a luz foi feita. 4.Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. 5.Deus chamou à luz dia, e às trevas noite. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia."

O que você consegue ler aqui? Deus criou algo que não existia, céu, terra, água, luz e trevas. Se não existia, Ele estava em outras dimensões. Haverá de ser e ter luz e trevas em outras dimensões? céu e terra? Como será a luz? Não é estranho?

Qual o legado que você deixará ao mundo? E quem terá orgulho dele?

Vamos à semana tensa!

Paulo


Amanda Machado disse...

Minas explorada (desde os tempos mais remotos), 28 de maio de 2019

Querido Paulo,
Minas sofre e o sofrimento de Minas não comove muitos mineiros...O Brasil é oferecido desavergonhadamente em liquidação numa feira de estrangeiros, por um desses crápulas de um governo fajuto e entreguista, e há quem defenda (de verde e amarelo). O país é hoje uma distopia das mais tristes. Mas esse sofrimento não comove a quem ainda não o sente.

Sua carta foi difícil, por isso a demora em responder...mas é reconfortante ser lembrada de que há brasileiros, mineiros, humanos (!) que ainda sentem...porque a dor do outro também não é nossa?

Para esses dias, a lucidez de Saramago é urgente e necessária: "...O medo cega... são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.("Ensaio sobre a Cegueira" é um livro absurdo!).

A que mundo poderemos deixar algum legado? Quem saberá o que é orgulho em pouco tempo? (pergunto às suas perguntas)

O fato é que a desesperança também nos cega. Por isso, fiquemos atentos, fortes e sensíveis...
Abraços,
Vamos à semana, vamos à vida possível e também à inventada, porque ela nos salva.