sábado, 4 de maio de 2019

Transbordar dói menos do que caber

   A partir de agora a viagem é de volta. Conhecidos os riscos do novo, experimentados o doce e a solidão, acumuladas poeiras distantes no par de tênis , descobertos outros desejos, abandonadas verdades inteiras,  terminadas as montanhas, perdoados os erros de estação, ponto, língua, troco, fotografados diferentes pisos, entregues os ouvidos às vozes estrangeiras, contemplados os sóis dos outros céus, passeado por alamedas que nunca mais verá e que nunca antes tinha visto; a viagem é, agora, é para si.

  Organiza a bagagem, cujo peso é o mesmo, mas os valores são outros. O coração era pesado antes de embarcar para a ida e agora é oco para a volta. As possibilidades eram limitadas e, agora, voltam expandidas.
  Não receberá mais as cartas, não as escreverá também. O endereço na outra cidade, logo se pagará, a casa não, o destinatário também permanecerá, por muito tempo, vívido, senão até o fim da sua existência tão amorosa.

  Eclipsados o sol e a lua, acompanhados os fenômenos a olho nu, sem telescópios, astrolábios, robôs e lentes. Só o pescoço virado para cima e os olhos  no firmamento, agora, é hora de apontar para uma direção aqui dentro.
   Atravessados os desertos, resistido ao oásis e sobrevivido às tempestades, vai entender a travessia em eco, como dádiva e não punição.
  Compreendidas as distâncias, somadas as ausências sem avisos, sem bilhetes em cima da mesa ou entregues ao porteiro, subtraídas horas de sono e de sonho, esvazia o coração na pia do banheiro e chama um carro para levá-la ao aeroporto.
  Senta-se em frente à parede de vidro e gosta de contemplar a despedida que é só dela. Nunca mais vai voltar com a mesma bagagem.

  Traduzida a música mais tocada nos  dias mais recentes, consultado o relógio, mais uma vez, enviadas as últimas mensagens em solo desconhecido, vai sentir vontade de voltar para casa, mas  também a saudade do deserto que a alimentou.
  Há vinte horas a última linha de uma carta arrancava suas lágrimas no quarto de um hotel. Sozinha, entendeu que a viagem acabava no final da folha; sem despedidas longas. A fronteira intransponível da covardia não aceitou o seu passaporte, sua cicatriz no supercílio, sua alegria antiga, tampouco, seu batom vermelho.
  Depois do futuro que nunca irá acontecer, vai decolar para o presente possível: conhecido e também instável.

  Ninguém mais esbarrou na mala dela nas últimas horas, nem ela quis saber tanto dela. Surrada, arranhada, desbotada e os pinos dos dois zíperes quebrados. Abre o seu passaporte para a imigração e, na foto, alguém com uma ilusão a menos e vários sonhos a mais. Ninguém volta com o mesmo peso ou sorriso depois de cada travessia.
  Cansada das camas dos hotéis, das ausências em dias de lágrimas, das cadeiras nas varandas das lanchonetes, das mãos que não a alcançam porque não se estendem em sua direção, das mesas de dois lugares nos bares, das promessas que não se cumprem porque desmancham no ar, vai fazer a viagem de volta, sem se sentir a mesma da foto no passaporte.

  Compartilhada as falhas, elencadas as mágoas e, do outro lado do papel, o perdão para cada uma. Vai viajar com as próprias asas, sem escondê-las mais sob a camiseta. Vai aterrissar transbordando, vai voltar sem caber de novo e, por isso, vai continuar a ser evitada em alguns países.
  A última chamada para o voo é a voz da esperança. Transbordar também dói, mas bem menos do que se limitar para caber.
  A partir de agora é ser vista por si. A partir, de agora, os problemas são os seus, os cortes nos pés a serem curados são nos seus calcanhares e de ninguém mais.

  Um nó na garganta, a falta de palavras para despedidas menos longas. Se fumasse, acendia um cigarro antes de embarcar; mas não é o caso.
   Vai voltar com a camiseta molhada de lágrimas, mas também do suor de quem sempre encontra coragem para enfrentar as travessias. Do assento confortável, ameaça tecer novos sonhos, diferentes amores. Na próxima vez, não doerá tanto as cartas ausentes.


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