quinta-feira, 25 de abril de 2019

Voo de gaiola: amor também é prisão

   As palavras rolam da língua dele, que é demasiado solta. Falar é fácil para ele, talvez a comunicação seja a sua liberdade maior. Vão e voltam infinitas; abertas, em asas e vozes, as palavras sobrevoam os silêncios, apartam solidões, rendem sorrisos. Ele não tem quinze anos e a sua habilidade de manter uma conversa é infinitamente maior do que a minha. Ele não se cansa e não cansa nenhum interlocutor; é carismático, interessante e se interessa pelos universos além do dele.
  Conta piadas, causos mineiros engraçadíssimos, força o sotaque para arrebatar os ouvintes,  a graça escorre pelas suas frases e ele nem precisa sorrir, mas assalta os risos.
- Dez canários belgas não valem um trica-ferro.
  Ele faz as contas do valor monetário de pássaros; seres vivos que valem conforme a especificidade do canto. Enquanto o homem tenta convencê-lo a não manter animais silvestres em cativeiro.

  E parece estranho mesmo que alguém tão afetuoso limite a experiência de um outro ser às grades de uma gaiola. Ele fala do processo de captura, da alimentação, do treinamento:
- Pra amansar é só colocar a capinha na gaiola.
- Como assim?
- Ué, deixar ele no escuro.
  Quanto mais limitado, mais bonito é o canto, parece. Ou sou eu que entendo assim, já nem sei. Ele não tem pudor em explicar. Os outros dizem que é crime previsto em lei, que ele pode ser preso, mas ele continua e insiste na beleza, no valor da beleza. É um conhecimento dele, ensinamentos que para ele fazem todo o sentido. Os outros persistem no discurso para além da legalidade do ato; é covardia, é maldade, é pecado, é judiação. Mas para ele não. Para ele é uma espécie de legado: fazer chegar aos outros o canto mais bonito que, na natureza, se perderia rápido.

  Eu também sou libertária, para gente,  bicho,  ideias,  sonhos,  passos e afetos. Eu também preferia ir dormir sem saber dos pássaros presos e com os dias sob uma capa de escuridão até o canto sair afinado. Eu também desejei que fosse brincadeira ou que ele mudasse de ideia e nunca mais prendesse um filhote.
- É a mesma coisa que eu te trancar naquele quarto ali e colocar comida pra você. Você não poderia ir onde quisesse.
  Alguém pregava, quando eu me lembrei da limitação dele. Na verdade, ele não pode, não pode ir para onde quiser. Ele não pode chegar até o portão se não tiver quem o auxilie. Ele nunca viveu a experiência  da liberdade prosaica de se levantar de algum lugar e andar até se cansar ou atravessar uma sala, um bairro, uma fronteira qualquer. Ele não foi um bebê que aprendeu a dar passos, a se equilibrar, cair, se levantar, até o corpo se tornar uma estrutura vertical e ereta. Ele não. Sua luta mais remota foi a de sobreviver, os passos ele ainda não os deu sozinho.

  Ele não precisa imaginar os seus pássaros silvestres presos, quarto escuro, a única alimentação é que a mão oferta pela porta ou o passeio pelas mãos que o levam para outros lugares, as mesmas que colocam e tiram a capa da gaiola. 
  Ele entende muito mais sobre a impossibilidade do voo do que qualquer pessoa que discursa para ele na varanda. Os pássaros e ele são muito mais parecidos do que nós com ele ou nós com os pássaros.
  Sinto um nó na garganta e, confusa, já não sei o que defendo.
  Ah Zé...ninguém aqui pode ir para onde quiser. Talvez por isso defendemos a liberdade dos pássaros. Porque é mais fácil, Zé. Só por isso. Não é por amor aos pássaros nem à natureza ou à liberdade. É porque é mais fácil, Zé, querer libertar o outro distante.

  Ele fala e, agora, eu entendo; amar não tem certo nem errado. Amor é tanta coisa e coisa nenhuma evidente. Ás vezes amar só é. Ele dá o que pode, ele recebe o que é possível também. Ele ama a beleza do canto cultivado em cativeiro. Ele ama o seu igual, com asas presas nalgum lugar.
 Ninguém gosta das gaiolas visíveis, mas são tantas das quais temos medo de nos libertar. Em alguma medida, todos na varanda estamos tão presos quanto os trica-ferros do menino. O canto bonito do pássaro pode ser melancolia, mas é também a liberdade possível.

  Sentada na varanda, ouvindo as histórias dele e assistindo alguém amar de outro jeito, eu tive vontade de rezar, depois de muito tempo. Tive vontade de pedir numa oração bem comovida para eu nunca me esquecer de que tentar entender é maior do que saber. Eu busco entender cada gaiola da qual eu luto para escapar e cada uma que me faz cantar.
  O menino que prende os pássaros roubou meu coração numa tarde de sábado ou noite de sexta; já nem sei. O menino que prende os pássaros sabe mais de amor e liberdade do que qualquer lei. Ele voa alto e sabe amar em cativeiro. Foi ele quem me libertou do preconceito das grades. Amor é tanta coisa e liberdade é mais do que não carregar gaiolas.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 de abril de 2019

Querida Amanda
Senhora dos Arquétipos das dores humanas

Tinha lido esta crônica, e juro, tinha algo ali que não conseguia ser traduzido. Li, reli, caramba, o que eu não estou vendo?

Ah, mas eis que aí naveguei por áreas remotas, pensando - onde Amanda quer nos levar? Demorei a perceber que não era para fixar os olhos no garoto, e sim na protagonista que nos convida ao submundo conturbado da sua psique que contém os sentimentos mais primitivos, os egoísmos mais afiados, os instintos mais reprimidos e aquele “eu escondido” que a mente consciente rejeita e que nos mergulha nos abismos mais profundos do nosso ser.

Ela trás luz às suas sombras, do carcere do amor ao paralelo com os pássaros na gaiola. Há dor ali, muita dor ... "o menino que prende os pássaros roubou meu coração ...". O menino é o agente de algum lugar do passado, que varreu suas dores para as sombras da sua existência.

Estou certo? estou errado? Nunca saberei.

Valeu, um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, deste primeiro de maio sem comemorações de 2019

Querido Paulo,
a visita que sempre traz doces, a este blog, para acompanhar os nossos cafés

O que eu já sei, há muito, é que a sua leitura jamais passa pela superficialidade ou se satisfaz com as facilidades das portas abertas. Mas, ainda assim, me surpreendo com as sua perspicácia/ sensibilidade e fico grata por tê-lo como leitor (muito mesmo!).

Você pergunta e já sabe a resposta...nem certo nem errado. Nunca saberemos.
Abraços,
Ótimo final de feriado. Sigamos!
Amanda