domingo, 14 de abril de 2019

Visita assim de um domingo

Inma Cuesta for Telva Magazine by Tomas De La Fuente  Apareceu na sala nesta manhã, sem avisos. Sentada no sofá macio, já não surpreende com seus olhos cinzas de vazio, voltados para a mesa de café com toalha tão colorida. Não diz nada, no começo, só olha; é antiga conhecida. Sua íris atravessa a minha xícara de café quente, não ofereço, porque ela já consome muito de mim quando vem.
- Vou ficar.
  Ela diz depois de uns minutos silenciosa e reta.
- Mas vai embora.
  Sou eu quem respondo, com a voz trêmula, tentado ser coragem.
  Sabemos uma da outra há muito. Nos vemos com uma frequência cuja medida eu não me esforço para conhecer. Suas visitas breves desalinham o meu cotidiano, afogam minhas certezas frágeis - que sucumbem em poucas braçadas -, apagam algumas luzes e estremecem alguns sonhos - pendurados em linhas vulneráveis espalhadas pela casa.

  Domingo pela manhã ela veio, sem pedir ao porteiro que a anunciasse, passou por dois portões, muito seguros, do meu prédio e abriu a minha porta sem dificuldade. Reincidente, ela invade, assalta meus desejos de alegria, sequestra minhas vontades e rouba alguns dias meus para não fazer nada com eles. Suspende a minha produtividade para o trabalho e também o meu delicioso ócio, fecha meus livros, esfria o apartamento e me aponta a cama - único lugar que me permite frequentar - para me fazer deitar com o medo, a culpa e as solidões, novas e remotas; estridentes e finíssimas; loquazes e discretas; diurnas, noturnas, diuturnas, soturnas.
  Se escondo o rosto debaixo do lençol, para esquecer um pouco dela, ela coloca uma das mãos sobre os meus pés. Se arredo sua mão, ela vem arrumar o travesseiro na minha cabeça; maternal no gesto, inquisidora na presença.

  Não vem de coturnos e roupas negras; é, em imagem, uma dulcíssima visão. Etérea, fluida e cercada de delicadezas. Lava as mãos, antes de colocá-las no meu peito, escova os dentes, depois de devorar meus risos. Não me ameaça, não grita; sussurra ou silencia.
  Seus olhos cinzas, pintam minhas esperanças temporariamente; quando vai não deixa marcas visíveis. É generosa ao dividir-me um pouco com os meus afetos: abre espaço para o gato amarelo se enroscar nos meus pés e deitar no meu colo, se afasta para os braços que me buscam, depois de não terem respostas.
  Ela me toma, mas também me deixa afetá-la, escuta as poesias que leio em voz alta, não interrompe os meus choros e não censura os risos que entram pela janela e me contagiam, por alguns minutos. Ela é madura e dócil, no café da manhã, mas também dura e inflexível, na madrugada.
     
  Ela sonha os meus sonhos; mas os lê muito diferente do que eu escrevi. Divide o meu prato de almoço, me tira o apetite do final da tarde e alimenta a minha noite com um temporal de pensamentos que eu não controlo; me afogam. Me obriga a dizer palavras ao telefone que eu não sei se gostaria de dizer; não me deixa atender a algumas chamadas. Propõe cortes, com a desculpa de mudança e  muros, para a minha segurança. Ela me quer quase inteira para ela. Só me tenho quando ela vai ao banheiro e se demora, quase me esqueço da sua indesejada visita.
  Se intromete nos assuntos da família, sugere rompimentos de amizades e amores. Colore de preto e branco as fotografias que eu já tinha coloridas.

  Desliga a TV, guarda minha roupa de ginástica, esconde os chás, os incensos, prende os meus pensamentos fortuitos na sua bolsinha de mão alaranjada. Vai à praça, ao supermercado, à padaria e fica comigo nas filas, não me deixa sorrir para as atendentes dos caixas. Me emudece, esconde de mim as belezas que estão todos os outros dias sob o meu nariz.
  Deixa as boas memórias menos visíveis, a casa menos aconchegante e o mundo exterior muito mais repulsivo. Reaviva meus medos, coloca junto do copo com água no criado-mudo os traumas, que eu achava superados e me convoca a visitar meus vazios; que parecem ampliados e infinitos quando ela os abre com as pontas dos dedos.

  Mas, também, acho que ela me ensina, me faz mais resiliente; talvez mais humilde e ainda me mostra que eu não estou segura atrás das portas e dos porteiros, dos sonhos e das esperanças ou dos amores e das suas promessas.
  Estou sempre ao alcance das suas visitas impostas e vulnerável aos seus ensinamentos. Já não tento expulsá-la, mas também não ofereço hospedagem longa. É um desconforto nas primeiras horas da sua chegada, uma angústia com sua perseguição implacável, até não me prender mais à presença dela e ir sendo com o que posso e o que sei ser com ela. 

  Chamo-a por TPM, em alguns períodos, de Inferno Astral, em um muito específico ou Coração Partido, Desilusão, Mágoa Antiga, Ansiedade, Melancolia ou só Tristeza. Sua música é bonita, mas não a convido a durar. A tristeza também me faz pensar e  desejar sentir para além dela.
  A tristeza toca um violino angustiado e profundo, pede um prato de sopa e se senta ao meu lado com o cabelo molhado e cheiro de banho recém tomado. Eu escuto a sua música, jantamos juntas na noite de domingo e eu peço que ela vá embora, mas não preciso dizer palavra alguma. A melancolia ouve a minha voz silenciada por ela. Quando reponde, eu nunca sei se no meu tempo ou no dela.
  Amanhã, no café, queria que ela não estivesse. Mas se estiver, saberei encontrar o gato amarelo e os abraços que conseguirem me alcançar. Visita assim de um domingo não costuma se estender muito; é no que eu me fio para sonhar esta noite.



2 comentários:

Ana disse...

Como me identifico...
beijo

Amanda Machado disse...

<3
Que passe ao seu tempo então... Beijos!