quarta-feira, 15 de maio de 2019

É urgente ter calma na pressa

  É urgente levantar cedo, embora o corpo queira mais tempo na cama, depois de uma longa noite sem sono. É urgente o alarme, que não é mais suave por causa da música clássica. É urgente escovar os dentes, com a torneira fechada, ir ao dentista duas vezes ao ano, ligar o chuveiro só depois de ter colocado a touca de plástico para não molhar o cabelo. É urgente tomar o café e se lembrar de comprar o filtro de papel para o outro dia. É urgente tentar desviar o caminho da lagartixa no azulejo, como hóspede cortês, para que ela encontre a saída pelo basculante da cozinha.
  É urgente conter o vazamento da pia, desligar o gás e as tomadas dos aparelhos elétricos, ligar para a mãe e felicitar pelo dia e perguntar sobre a saúde. É urgente ouvir, com paciência, todos os desdobramentos de cada diagnóstico.

  É urgente calçar os sapatos certos e enfrentar o medo. É urgente fazer o próprio caminho; com ou sem oração. É urgente ter esperança em alguma causa, borboleta, sinal, alguém, especialmente, em si mesma.
  É urgente não se esquecer do bom-dia ao motorista, porteiro, vizinho que nos ignora. É urgente não ignorar a dor dos outros, o sorriso dos outros, as existências dos outros; cada uma delas. É urgente não faltar ao treino, mas se não tiver tempo, ao menos, não se esquecer da luta. É urgente não se acovardar e só responder ao ódio com perdão, depois da tentativa do entendimento.
  É urgente tomar decisões e ter coragem para romper ciclos. É urgente começar algo novo todos os dias: cuidar de uma planta, um cachorro de rua, um menino sem livros ou um sentimento. É urgente ajudar a crescer e também não se acomodar com a forma antiga.

  É urgente envelhecer na vida, mas não aceitar as nódoas amarelecidas nos sonhos. É urgente estrear, ter a insegurança dos começos, o frio no estômago e as mãos suadas.
 É urgente cantar, enquanto varre os cômodos, recolhe o lixo e limpa o piso, arranhado de memórias, da casa. É urgente descer a rua de mãos dadas com a melhor amiga, ainda que ela esteja noutra cidade, estado ou continente. É urgente deixar os pingos de chuva molhar o cabelo ou sair com um guarda-chuva colorido e gigante.
  É urgente provar uma comida nova, uma música, um sentimento, uma pessoa, um outro lado da cama ou história.
 É urgente perguntar, na dúvida, e saber habitar silêncios, quando eles são imprescindíveis.

  É urgente não desistir do país por hoje; acreditar nos livros, nas músicas, nos artistas, nas mulheres que fazem os cafés nos escritórios; acreditar nos grafites, na poesia das periferias, nos falares e saberes rurais. É urgente não querer fugir por hoje. É urgente ficar.
  É urgente ouvir Jorge Drexler, Milton Nascimento, assistir ao Almodóvar, ao nascer do sol, à Pina Bausch e ao pôr do sol.
  É urgente ter calma para tudo isso, mas não perder, nenhum tempo, sem viver isso.

  É urgente sobreviver ao octógono, não ouvir as vozes da torcida adversária e só se concentrar em sair viva para a próxima luta e a próxima e a próxima. É urgente não esconder a doçura, a ingenuidade, a vulnerabilidade ou a dúvida.
 É urgente fazer da sensibilidade uma força e querer uma batalha justa e solidária. É urgente dar os socos, se for preciso, e estender a mão sem ter medo dos riscos.
  É urgente amar de todas as formas possíveis e amar um mesmo amor de outros jeitos e chorar, se tiver que se afastar.

  É urgente usar todas as cores da caixa de lápis,  não economizar os adesivos do caderno, parar para amarrar o cadarço e, depois, correr de novo. É urgente usar o aparelho nos dentes, a palmilha ortopédica, as pomadas para acne no tempo certo.
  É urgente sonhar sozinha e também compartilhar sonhos. É urgente não temer o espelho, as fotos e ser generosa com o julgamento de si.
  É urgente escolher o que fazer com o seu dia, noite, anos, cabelo, útero, coração, vida. É urgente não se arrepender de ser.

  É urgente se embriagar e curar a própria ressaca; é urgente não culpar o álcool pela dor de cabeça e estômago ruim, no dia seguinte.
   É urgente fazer o necessário e também aquilo que se ama; é urgente não colocar ambos em campos opostos. É urgente dançar quadrilha ao menos uma vez na vida, comer doce de abóbora com coco, andar à cavalo, fazer uma trança no cabelo de uma criança, com amor nas pontas dos dedos, ir a Ouro Preto, Paraty, a um armazém do interior e à Pasárgada.
  É urgente ler mais poesia e não se esquecer das notícias, celebrar as vitórias íntimas e se solidarizar com os desastres humanos. É urgente ter calma, mesmo na pressa. É urgente, todos os dias, sobreviver.


2 comentários:

Kellen disse...

É pra ler suspirando ❤️

Amanda Machado disse...

E ler seu comentário suspirando também...gracias, hermana!