domingo, 26 de maio de 2019

O que ninguém vai ler é escrito nos domingos

  Notei-a escrevendo, parada numa esquina, de saia marrom com bainha na altura do tornozelo,
escapulário no pescoço - único acessório decorativo -  camisa bege abotoada até o colarinho, minuciosamente esticado, nenhum friso de desarrumação. Notei-a encostada no poste, sem atrapalhar os sonolentos transeuntes da manhã de domingo, com as suas sacolas amarelas do supermercado, um cão agitado a passear, um carrinho com um bebê sorridente para tomar sol ou somente o folheto da missa recém terminada.
  Notei-a discreta, sereníssima, com a caneta firme na mão esquerda e uma bolsa de alça transpassada pelo corpo, pendurada no quadril direito. Notei-a concentrada na folha do seu caderno e os olhos brilhando a cada rodopio da sua caneta prateada. Notei-a não guardando o domingo.

  Pensei no seu caderno repleto de versos pornográficos a serem publicados num heterônimo; estratégias contra o patriarcado - ela o irá ruir com a mesma calma que escreve. Pensei em uma fórmula de química, criada por ela; uma nova cor de esmalte, que ela não usará. Ou uma carta, confessando um amor, suplicando uma resposta para o amado, terminando com o seu amante ou desejando a mulher do próximo.
  O que a freira escreve no domingo, na avenida  só ela sabe. Passo por ela e ela não me vê, mantém os olhos enamorados pela própria escrita. É assim que me parece a paixão: um consumo calmo e, num mesmo tempo, aflitivo; libertário e altamente exclusivista, prolongado e urgente. Notei-a apaixonada, com os olhos no caderno e coração na mão canhota.
  Pensei nos muitos mistérios entre os olhos dela e a tinta no papel. Pensei que só sabe mesmo dela, quem lê o que ela escreve.
 
  O mundo que cabe no bloco de notas dela. A vida que fora do bloco é ordinária demais, simplória demais, desesperançada demais. O mundo que ela constrói com uma caneta prateada, que não admite os silenciamentos deste, que escolhe palavras que caibam nos sentimentos, sem tanta necessidade de ajustes, que vestem as vozes, que despem as almas, que acolhem fragilidades e inspiram coragens.
  A freira encostada no poste, talvez narre este mundo, talvez esteja criando um outro; como saber? Por isso não me vê, por isso não se ocupa dos dízimos e do rebanho que só obedece ao seu pastor. Ela não é nada para eles; ela é tudo na minha manhã de domingo. E se a caneta dela pode escrever a minha vida? Que mote é o meu, a partir de segunda-feira?

  Sigo o meu caminho planejado e ela ainda escreve atrás de mim, corro para longe da sua caneta, porque, em minutos, voltarei a passar pelo mesmo lugar. Quero ter coragem para pedir para ler uma linha da minha vida, que seja. Atravesso algumas ruas, viro a última esquina e paro para dar passagem a um carregador, que coloca um baú na calçada, esperando espaço na carroceria do caminhão de mudanças.
  Um baú antigo, não sei o quão cheio ele estava, mas o esforço para colocá-lo no chão foi imenso, o senhor de braços fortes fez caretas, enquanto se abaixava. De lembranças ou de objetos da própria mudança, o baú pesado foi ultrapassado por uma geladeira, uma cômoda, uma mesa e cadeira de escritório, uma casinha de cachorro, um aquário e uma dezena de outros objetos; o viajante pesado de outros tempos permanecia na calçada, esperando um lugar na carroceria de partida.

   Continuei andando, mas amainei os passos. Deixei a escritora de mistérios, agora abandono um baú detentor de ancestralidades que na minha família não se materializou. Um dia, quando saí de casa, não levei um pano de prato bordado pela minha mãe; somos desgarradas de tradições, talvez por isso eu tenha invejado o baú. Se ele fosse meu, eu guardaria o quê? O que do passado eu estenderia para os agoras futuros? Fotos, pedaços de tecidos, diplomas de familiares, mechas de cabelos, dentes de leite de infâncias...
  Um baú antigo em mãos muito jovens e desconhecidas do valor que não tem medida. Uma herança que eu nunca terei e talvez não chegue a deixar. O mistério do baú é o mesmo da freira-escritora, não sabemos o que transportam. 

  O bloco de notas dela, o baú empoeirado, meu coração no domingo de manhã; quem olha não sabe, quem passa os olhos sobre os três não sabe de nada. Nós três continuaremos a carregar os mistérios indecifráveis para quem não lê o caderno de notas, porque não pede; não abre o baú com cadeado perdido, porque não se esforça; ou não alcança o meu coração, porque não se interessa por minhas banalidades.

  Está na caneta da mulher  que escreve aos domingos, os mistérios do seu papel, as memórias do baú antigo e os descaminhos do meu coração, que enquanto caminho se fortalece para os muitos anos descompassados que trilho a cada volta de domingo.
  A freira pode ter escrito um novo capítulo da própria vida, uma outra obra, sem o tédio desta ou quem sabe, era só um salmo que ficara perdido e voltou para encontrá-la na esquina. O baú, finalmente, abandonou a calçada e foi colocado entre uma poltrona e uma fruteira; só o meu coração é que não tem encontrado utilidade aos domingos. O que ninguém vai ler foi escrito hoje pela manhã, por mãos passionais, na avenida que nem é a mais comprida da cidade.





4 comentários:

Kellen disse...

Banalidades úteis e lindas ❤️

Amanda Machado disse...

Sob a generosidade do olhar que aceita, ama e valoriza.

Paulo Abreu disse...

Minas Geraneas, dia fim de 06062019

Prezada adepta da empatia "En passant" dos transeuntes descritíveis.

Bom demais da conta ler você!

*Geraneas são os mastruços que grassam as Minas. Mastruço,ou mentrasto, é o nome genérico, popular, que provém do latim nasturtium (das palavras nasus, nariz, e torquere, torcer, em referência ao cheiro desagradável que exalam, fazendo "torcer o nariz"). E tal qual Minas, está o Gigante - entorpecido, que não há mais, e agora José, e agora?

PS - Sou boticário, tal qual Drummond, daí a citação do Mestre.

Um abraço
Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 08 de junho de 2019

Querido Paulo,
o tempo tem sido um rígido e exigente guardião dos meus dias...
Difícil aparecer aqui e em outros lugares dos quais tanto gosto, mas as visitas ainda acontecem, embora eu não deixe um cumprimento afetuoso sequer... Do seu Reino também não me afastei.

Que bom que encontre aqui algo do qual goste. Obrigada por me lembrar disto... É muita generosidade sua.

"E agora, José?"... Essa é a questão filosófica-matuta mais profunda dos nossos dias. Estamos vivendo a distopia, quem nos escreverá na história se não conseguimos avançar as páginas?

Verdade... tem mais isso em comum com o grande Drummond... que privilégio!
Abraços,
Amanda Machado