Eu queria ter tido tempo de ensaiar os gestos, queria poder tê-los enchido de delicadeza antes de você atravessar a porta e escutarmos o fim, como um estrondo de um livro pesado caindo no chão.
Queria ter o vento exato na boca, como aqueles homens que moldam peças em vidro com um sopro firme, nem demasiado forte nem fraco; mas o único que cabe.
Queria ter colocado as minhas mãos sobre as suas e não tê-las guardado no bolso, nem desviado do cumprimento derradeiro.
Não queria ter o rosto seco e a voz opaca de sentimentos, mas também não queria uma face encharcada de tristeza e voz embargada, mas que eu pudesse dizer as palavras escolhidas de um repertório poético.
Queria ter colocado gerânios no vaso da mesa, ter me sentado exatamente à sua frente, ter olhado profundamente nos seus olhos, com todo amor e suavidade com os quais eu desejei que o mundo te visse. E que as palavras saíssem como pétalas: suaves e frescas. Que os espinhos não nos alcançasse nunca.
Eu queria ter a elegância de um cavalo de corrida, quando você chegasse e eu fosse embora; ser exata e belíssima para atravessar a pista sem olhar para trás. Mas a elegância não cabe nos finais.
Eu queria ter colocado uma música antiga do Eric Clapton, uma que ele conta sobre uma noite perfeita, se lembra? Eu gostaria que fosse essa a trilha de despedida. Nada dramática.
Eu queria ter escrito para você uma carta antes da minha ofensa magoada, queria tê-la lido e entregue em um envelope azul e gostaria que você a guardasse por muito tempo; que a lesse outras vezes e que ela fosse capaz de apagar o que não foi bonito entre nós.
Queria ter dito que amava, antes de não amar mais. Queria continuar amando na lembrança, quando o amor saísse pela janela. Eu queria me soltar do amor que precisa ir, mas guardar um fio dele em algum lugar profundo e misterioso para os outros, mas sutil e fácil de segurar nas minhas mãos, quando eu quisesse, como num bolso interno de casaco. Bem ajustado ao peito.
Queria ter oferecido uma taça de vinho, uma xícara de café, uma caneca de chá; algum líquido que ajudasse a desfazer qualquer nó na sua garganta, para que você também pudesse falar, sem cerimônia, mas com gentileza na voz.
Eu queria que o que eu falasse ou o que eu quisesse dizer, chegasse sem ruídos até você; em uma última comunicação inacreditavelmente acertada.
Eu queria ser alguém que compreende com leveza e altruísmo as muitas mortes do amor. Queria ser alguém que ardesse de tristeza, mas não incendiasse a casa. Queria poder assistir sem gritos, sem desesperos, sem atropelos a suavíssima passagem de um amor em estado sólido para o líquido ou do líquido para o gasoso - que eu acho mais provável.
Eu queria ser capaz de não deixar a fonte secar, de ter sempre um copo de água para oferecer, mesmo na estiagem mais rigorosa.
Eu queria não ser a que ofende as visitas, a que responde com grosseria aos conselhos bem intencionados.
Eu queria ouvir, de novo, o Eric nos fones, enquanto caminhasse para longe, queria parar numa igreja e rezar para que o nosso futuro, sem nós, fosse tão amoroso quanto o que sonhamos ter.
Queria dar seu nome ao meu próximo gato ou a um filho ou aos dois. Eu queria não me esconder quando o encontrasse na rua muitos anos depois; eu queria ser capaz de abraçá-lo em qualquer tempo.
Eu queria ter podido arrumar as malas, enquanto você comia uma banana amassada com granola e que buscasse sacolas usadas, quando eu precisasse guardar um sapato.
Eu queria me despedir de antigas amizades com uma mesura de gratidão, um buquê de flores do campo, uma caixa com fotos dentro, um aceno de adeus bem longo e lento; clichê de cinema clássico.
Eu não queria ter sido tão impulsiva e bloqueado e ignorado e me orgulhado de não perdoar. Eu queria ter rompido os laços sem o drama da tesoura, bastava um banho de cachoeira e a fita se romperia sozinha, debaixo de água corrente.
Eu queria ter mandado o Neruda antes de nunca mais nos falarmos, antes que a amizade virasse vinagre.
Eu não gostaria de ter esperado o natal e uma mediação para entregar a minha despedida. Eu mesma queria ter batido à porta.
Eu queria não me sentar nos bancos de trás dos carros e constatar, de repente, que a vida é outra, os sonhos crescem noutra direção e que, por isso, eu preciso me apressar para ir embora.
Eu queria saber me despedir sem chorar, e o mais importante, sem fazer chorar. Eu queria colocar os gerânios nos vasos, as palavras certas entre os silêncios, o seu nome numa eternidade e o Neruda num bilhete, antes do copo se espatifar no chão.
Mas quando o Neruda chega, todos os copos já estão irremediavelmente perdidos. É quando o poema só serve para embalar os cacos.
2 comentários:
Minas Gerais, Dia -4 para 15 de Maio de 2019
Prezada Amanda
Que texto, hem! Há uma feminilidade real, tangível e emocionante. Hoje não vou me alongar. Há um poema, não é do Eric Clapton, mas há um poema que conectei ao seu texto de uma forma que só outra mulher conseguiria transformar em uma leitura onde lemos e identificamos como sentimento feminino. Outro dia falarei sobre a eterna disputa razãoXemoção, onde a razão é feminina, sempre.
O poema abaixo tem a seguinte fonte:
http://gregosetroianos76.blogspot.com/2019/04/recado-de-pascoa.html
Autora: Rita Grego
RECADO DE PÁSCOA
Feliz Páscoa!
Nem sei ao certo se você acredita em Deus,
Jesus ressuscitado ou Santíssima Trindade.
Se a Via Crucis faz sentido em sua vida.
Não te imagino criança esperando o coelhinho trazer ovos!
Nem no amor, eu sei se você acredita.
Mas dias desses, em um feed qualquer, vi uma sua foto
de um Réveillon antigo.
E nela você estava com cara de esperança.
Brindando o novo que chegava.
Talvez por isso tenha resolvido te enviar esse:
Feliz Páscoa!
A verdade é que estou só me aproveitando
dessa data comemorativa para , no meio da avalanche
de memes, gifs, vídeos de auto ajuda, figurinhas e emojis,tão comuns nessas
datas,me fazer discretamente presente na sua “time life”!
Feliz Páscoa!
Só escrevi isso.
Mas se você ler com reparo também está
escrito, com letras bem pequenas:
Que penso todos os dias em você.
Que sinto sua falta.
Que seu abraço é o melhor de todos.
Que sinto raiva. Muita raiva.
Que tentei te apagar de mim com outros corpos.
Que não consigo comer chocolate sem lembrar de você.
Que sou intensa mas sou também calmaria.
Que ainda acredito em nós.
Que o personagem social que você criou é incoerente e
Quando você tira a máscara fica muito mais bonito.
Que o seu silêncio é uma grande demonstração de covardia.
É isso!Feliz Páscoa!
Valeu, Amanda, bom final de semana!
Minas Gerais, dia -2 para 15 de maio de 2019
Querido Paulo,
suas visitas são sempre muito comemoradas...e esta é uma semana, especialmente, de comemoração e também muitas reflexões. Sua passagem por aqui nunca é uma folha em branco ou com frases dispensáveis. Sempre deixa poesia, músicas, belezas de ordens diversas, observações fabulosas, confissões (talvez) e outras tantas marcas que muito me enriquecem. Grata sempre!
Adorei o poema...e a conexão foi surpreendente e oportuna...não saberia dimensionar o quanto!
Abraços,
Ótima semana
Amanda
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