domingo, 2 de junho de 2019

Há um poeta que ainda não escreve para ninguém

   Há um poeta no apartamento de cima; descobri pelo barulho do teclado durante a madrugada; pelas chaleiras de água que ele ferve para os seus chás noturnos; pelos pés inquietos debaixo da mesa em que ele escreve até a manhã; pelo barulho da xícara; pelas batidas do seu coração, que eu escuto quando acordo no meio da madrugada.
  Há um poeta morando no mesmo prédio em que eu habito, sei porque encontro palavras descartadas no lixo, frases sem destinos nos vasos de plantas e debaixo dos capachos das portas dos apartamentos. Do apartamento do poeta, escapam palavras em profusão; pelas janelas, vãos das portas, pelos buracos das fechaduras, pela abertura da porta, enquanto ele entra ou sai com o cachorro para passear, recebe os pedidos de comida e da farmácia.
  Mas antes dos indícios nos hábitos e nas letras perdidas, soube quando meus olhos não escaparam dos dele; soube porque moram nas suas íris outros mundo que só ele vê. Estou perdidamente apaixonada pela sua poesia; não pelo poeta.
  Mas ele escreve durante a noite e rasga as folhas no dia seguinte. O poeta não sabe que a sua poesia já encontrou quem precise dela.

  Há outra desilusão na casa vizinha. A mulher recém-separada, disputada por dois homens na semana passada, mas que ainda sonhava com o que foi embora, teve o seu encontro desmarcado há poucas horas do que estava planejado. Agora está na varanda, recolhendo a roupa do varal e culpando o ex-marido por mais esse fracasso. Se chove, ela se lembra de falar o nome dele enquanto fecha as janelas emperradas nas quais ele não passou óleo, se faz sol, ele é lembrado pelos peixes que trazia para casa, se é dia, tarde ou noite o nome dele ecoa pelo bairro. A mulher talvez se refaça do rompimento ainda este ano, mas do costume é bem mais difícil se afastar.
 Há, de novo, o sonho e o romance partido.
Por que as mulheres enfeitam amores e não recebem gentilezas, à altura, em troca? Por que criam meninas para suspirarem e meninos que se esquecem das datas? Por que as mulheres sonham com as flores pelas quais podem pagar? Por que os homens não aprendem a admirar jardins?
  Um dos pretendentes desmarcou o encontro em cima da hora; ela prometeu, com voz embargada, cabelo num coque, olhos vazios de paixão, de novo, segurando um lençol amarelo, não esperar mais por  ninguém.

  Há uma hora do dia, um dia da semana, alguns dias do mês e ano em que eu sinto uma angústia profunda, ligo para cada amor e todos dizem que estão bem; só então, eu começo a suspeitar que talvez seja eu quem não esteja. Canja de galinha, banho quente e cobertor; nada passa, a angústia é mais resistente que um vírus.
  Há um sentimento que atravessa todos os outros, que propõe repensar a saudade, interrogar o amor, incentiva a ecoar silêncios e calar muitas vozes antigas. Há uma sensação de liberdade que quer se aproximar da coragem para abrir o cadeado, quando ela chamar. A angústia segura a chave e espera a hora certa para abrir. 

  Há um muro alto, que cerca a casa abandonada e ela parece ainda mais abandonada, isolada do mundo. A casa isolada de presenças guarda todos os abandonos da cidade: o pai que não reconheceu o filho, o namorado que pediu um tempo para pensar e não volta mais, o animal da família que não caberá no apartamento novo, o sonho, a promessa, o mapa.
  Há um muro alto que esconde as memórias, os retalhos e as dívidas. Há uma casa, no centro, cercada de gatos e poeira; uma casa que faz lembrar que o esquecido fica só atrás do muro. Não há tijolo que isole os abandonos por toda a vida.

  Há uma menina que escreve cartas tristes para mim e eu não sei como ajudá-la, além de também ficar muito infeliz com os seus segredos. Sou um padre que ouve as confissões e não aconselha nenhuma oração depois. Pareço ótima ouvinte, mas grudam as palavras no meu corpo, depois que as ouço. Sou muito pesada depois dos desabafos.
  Há uma menina que deveria desenhar flores e escrever em diários com canetas coloridas, mas que escreve para mim dolorosas linhas, que não rimam nos finais de cada frase.

  Há um país triste e violento dentro de um país alegre e pacífico, e eu só posso amar um, se eu aceitar viver no outro. Há uma gente mesquinha, vingativa e ignóbil, que anda pela mesma calçada de uma gente criativa, solidária e infinitamente bela. Há mãos que apontam armas e outras que afagam sofrimentos, as duas se cumprimentam nas missas de domingo.
  Há um país para mim que não é o mesmo para todos os meus compatriotas; o país deles também não é o meu.

  Há um amor que parece feliz, mas quer acabar, não sei quando. Há um amor para começar, mas não acontece agora, porque os amores nunca têm hora.
  Há um poeta no apartamento de cima, que se eu pudesse eu pediria um poema para o que eu escrevo, um outro para o que eu desacredito, outro para a minha angústia enraizada, um muito bonito para a menina das cartas e um que pudesse florescer o meu país e o meu improvável amor. Há um poeta que ainda não escreve para ninguém, além de mim.
  O poeta gera a poesia durante a noite e tenta matá-la quando é dia. Mas os seus poemas têm asas, um dia terei a sorte de um deles pousar na minha janela. Há nesse mundo tanto dor, quanto alegria; o poeta sabe das duas.




2 comentários:

Kellen disse...

Que jeito lindo de começar meu domingo...

Amanda Machado disse...

Lindo jeito de começar a minha tarde de domingo...
Gracias, hermana! <3