sábado, 15 de junho de 2019

Esse texto não vai ajudar em nada

  Entenda, esse é um texto feito de nadas, sem destinatários certos, cujo remetente dormirá, logo após terminá-lo, o sono das inquietações. Porque esse texto não ajudará ninguém a dormir.
  Esse texto não pode salvar ninguém da morte, tampouco da vida. Não ajudará nenhuma pessoa a ser mais forte, não suavizará as dores de desamor, não afagará as desilusões, não mentirá que ele volta ou que ele vai para sempre.
 Esse texto não é colchão de água, não é paraquedas, para-brisa, para-raios; não é o parapeito da cobertura mais alta da cidade; esse texto é real, é pão na chapa da padaria, não é brioche.

  Esse texto cheira a cigarro, café e cachaça, esse texto tem a voz rouca e trêmula, um semblante conformado e olhos de cão sem dono. Esse texto usa camisa amassada, metade para fora do cós da calça, tem os sapatos mais gastos nas pontas e numa das laterais. Esse texto não sabe o que fazer com as mãos, quando está parado e raspa os lábios com os dentes, enquanto espera por algo. Nenhum batom resiste à ansiedade deste texto.
  Ele tem dívidas, tem arrependimentos, tem cinco ovos na geladeira, uma garrafa d'água, um pedaço de queijo e meio pimentão amarelo. Esse texto não tem fome, esse texto não conhece a fome; mas tem desejos, tem apetite.

  Ouça, esse texto é um vazio na noite de sexta-feira, é um cansaço de fim de semana, é uma resolução adiada até segunda-feira, até o dia vinte, até o final do mês, até o próximo semestre. Esse texto é um procrastinador inveterado. Esse texto não pode levar ninguém ao País das Maravilhas, a Macondo, Pasárgada, porque esse texto não é literatura.
  Esse texto é uma avozinha bem velha, com cardigã azul bebê, segurando a mão de uma jovem estudante, pela primeira vez morando longe dos pais, chorosa no ônibus, tentando salvá-la do recém-descoberto deserto cinza:
- Vai ficar tudo bem. Logo cê acostuma, minha filha.

  Esse texto é a boa intenção que não vira a esquina,a espera que nunca chega no horário, que só chega um ano depois ou dois minutos - tanto faz, já é tarde mesmo.
  Esse texto não ensina a ganhar dinheiro, trazer a pessoa amada em três dias, a educar os filhos, a adestrar cavalos, a fazer adubos, captadores de luz solar ou xampu natural. Esse texto não salva o meio ambiente das pessoas, não salva as pessoas que matam o meio ambiente, esse texto não é vegano, não é ecologicamente correto, não é sustentável. Esse texto polui, desmata, esse texto é uma grande área improdutiva.

  Esse texto não ilumina um bairro, uma rua, um prédio, uma casa, um cômodo, esse texto é tão escuro que aciona as luzes de emergência. Esse texto é um transtorno, muito cuidado!
  Esse texto não é recomendado, não é querido, não é convidado para nada. Esse texto é um estrangeiro, um refugiado, um apátrida. Esse texto não tem geografia. Mas esse texto é tão irrelevante que não tem ajuda humanitária, esse texto está só.
  É uma mensagem na garrafa, não chega a tempo de salvar; só serve para poesia. Esse texto é um sei lá, você é quem sabe, qualquer coisa eu te falo. Esse texto não conhece vontade. Não está apaixonado, embora tenha amor em cada linha.
  Esse texto quer ser passional, mas não chega perto do fogo. Esse texto não quer só se casar e ter um casal de filhos, mas também não atravessa o oceano para ver o que tem do outro lado. Esse texto evita os espelhos e fotografias; ele teme os próprios olhos de desencanto.

  Esse texto é uma coragem pequena, uma fagulha que precisa ser cuidada para que não se apague até  conseguir ser labareda imponente. Ele é um suspiro fundo numa sexta-feira convalescente, vazia de luta armada, cuja soldada temporariamente parece desertar. Recostada na barricada, ela usa a bandeira branca para limpar o choro.
  Entenda, esse texto não é um kamikaze, homem ou mulher-bomba, esse texto quer viver, ele não quer participar de nenhuma morte. Esse texto queria trabalhar na cruz vermelha, mas aprendeu a atirar muito cedo. Esse texto é um rio, uma faixa estreita de água que passa pelas casas, fazendas, solidões de grande ou pequeno porte, molha os meninos no verão, os cavalos, cães, milhos, canas e feijões o ano todo. 

  Esse texto não traz verdades, não é nenhuma prescrição médica, nem poema. Esse texto não sabe aferir pressão arterial ou batimentos cardíacos.
  Ele não dá garantia de um ano, não dá desconto em compra alguma. Este texto não queria ser nada e conseguiu não ser. Mas esse texto queria segurar o seu coração e, tal qual a velhinha de cardigã azul, no ônibus, aliviar o seu cansaço e dizer que tudo ficará bem.
  Ouça, esse texto não é uma carta, não é um anúncio, nem convite, não é uma renúncia, tampouco promessa. Esse texto não vai ajudar em nada, mas é bom ouvinte, faz bons cafés e acaba, quando começa a ficar chato.



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